Poe utiliza a composição de seu próprio poema " O Corvo "como um exemplo. O ensaio apareceu pela primeira vez na edição de abril de 1846 da revista "Graham's Lady's and Gentleman’s Magazine" . É incerto se ele é um retrato autêntico do próprio método de Poe.
Edição em PDF em português ou inglês
PS.: o início é meio massante, (mas importante) sugiro pular essa parte.
Título original: PHILOSOPHY OF COMPOSITION
CHARLES DICKENS, numa nota que agora está à minha frente, aludindo a uma
análise que fiz, certa vez, do mecanismo do Barnaby Rudge, diz: "De passagem,
sabe que Godwin escreveu seu Caleb Williams de trás para diante? Envolveu
primeiramente seu herói em uma teia de dificuldades, que formava o segundo
volume, e depois para fazer o primeiro, ficou procurando um modo de explicar o
que havia sido feito."
Não posso pensar que esse seja o modo preciso de proceder de Godwin, e, de
fato, o que ele próprio confessa não está completamente de acordo com a idéia
do Sr. Dickens. Mas o autor de Caleb William era muito bom artista para deixar de
perceber a vantagem procedente de um processo pelo menos um tanto
semelhante. Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas desse
nome, ser elaboradas em relação ao epílogo antes que se tente qualquer coisa
com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista podemos dar a um
enredo seu aspecto indispensável de consequência ou causalidade, fazendo com
que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o
desenvolvimento de sua intensão.
Há um erro radical, acho, na maneira habitual de construir-se numa ficção. Ou a
história nos concede uma tese ou uma é sugerida por um incidente do dia; ou, no
melhor caso, o autor senta-se para trabalhar na combinação de acontecimentos
impressionantes para formar simplesmente a base da narrativa, planejando, geral-
mente encher de descrições, diálogos ou comentários autorais todas as lacunas
do fato ou da ação que se possam tornar aparentes, de página a página.
Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Mantendo sempre a
originalidade em vista (pois é falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma
fonte de interesse tão evidente e tão facilmente alcançável), digo-me, em primeiro
lugar: "Dentre os inumeros efeitos ou impressões a que são suscetiveis o
coração, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na ocasião atual
escolher?" Tendo escolhido primeiro um assunto novelesco e depois um efeito
vivo, considero se seria melhor trabalhar com incidentes ou com o tom - com os
incidentes habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a especialidade
tanto dos incidentes quanto do tom - depois de procurar em torno de mim
(ou melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me
auxiliem na construção do efeito.
Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista por um
autor que quisesse - isto é, que pudesse- pormenorizar, passo a passo, os
processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de
acabamento. Porque uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa
que não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais
responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa. Muitos
escritores - especialmente os poetas - preferem ter por entendido que compõem
por meio de uma espécie de sutil frenesi, de intuição extática, e positivamente
estremeceriam ante a idéia de deixar o públíco dar uma olhadela, por trás dos
bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, para os
verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros
relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as
imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como
inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeição, as dolorosas emendas e
interpelações, numa palavra: para as rodas e rodinhas, os apetrechos de
mudança do cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a
tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos
casos, constituem a característica do histrião literário.
Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum o caso em que um autor
esteja absolutamente em condições de reconstituir os passos pelos quais suas
conclusões foram atingidas. As sugestões, em geral, tendo-se erguido em
tumulto, são seguidas e esquecidas de maneira semelhante.
Quanto a mim, nem simpatizo com a repugnância acima aludida nem, em qualquer
tempo, tive a menor dificuldade em relembrar os passos progressivos de
qualquer de minhas composições; e desde que o interesse de uma análise ou
reconstrução, tal como a que tenho considerado um desideratum, é inteiramente
independente de qualquer interesse real ou imaginário na coisa analisada, não se
deve encarar como falta de decoro de minha parte o mostrar o modus operandi
pelo qual uma de minhas próprias obras se completou. Escolhi O Corvo, como a
mais geralmente conhecida. É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto
de sua composição se refere ao acaso ou à intuição, que o trabalho caminhou
passo a passo, até completar-se, com a precisão e a sequência rígida de um
problema matemático.
Deixamos de parte, por ser sem importância para o per si a circunstância ou,
digamos, a necessidade que em primeiro lugar deu origem à intenção de compor
um poema que, a um tempo agradasse ao gosto do público e da crítica.
Comecemos, pois, a partir dessa intenção.
A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais
para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito
imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se
requerem duas assentadas os negócios do mundo interferem e tudo o que se
pareça com totalidade é imediatamente destruído.
Mas, visto como, ceteris paribus, nenhum poeta pode
permitir-se dispensar qualquer coisa que possa auxiliar seu intento, resta a ver se
há, na extensão, qualquer vantagem que contrabalance a perda de unidade
resultante. Digo logo que não há, O que denominamos um poema longo é, de fato,
apenas a sucessão de alguns curtos, isto é, de breves efeitos poéticos. É
desnecessário demonstrar que um poema só o é quando emociona,
intensamente, elevando a alma; e todas as emoções intensas, por uma
necessidade psíquica, são breves. Por essa razão, pelo menos metade do Paraíso
Perdido é essencialmente prosa, pois uma sucessão de emoções poéticas se
intercala, inevitavelmente, de depressões correspondentes; e o conjunto se ve
privado, por sua extrema extensão, do vastamente importante elemento artístico:
a totalidade ou unidade de efeito.
Parece evidente, pois, que há um limite distinto no que se refere a extensão: para
todas as obras de arte literária, o limite de uma só assentada; e que, embora em
certas espécies de composição em prosa tais como Róbinson Crusoé (que não
exige unidade), esse limite possa ser vantajosamente superado, nunca poderá ser
ele ultrapassado convenientemente por um poema. Dentro desse limite a
extensão de um poema deve ser calculada para conservar relação matemática
com seu mérito; noutras palavras: com a emoção ou elevação; ou ainda em
outros termos: com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de
produzir. Pois é claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade
do efeito pretendido e isto com uma condição: a de que certo grau de duração é
exigido absolutamente, para a produção de qualquer efeito.
Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação que
eu não colocava acima do gosto popular nem abaixo do gosto crítico, alcancei
logo o que imaginei ser a extensão coneniente para o meu pretendido poema: uma
extensão de cerca de cem versos. De fato, ele tem cento e oito.
Meu pensamento seguinte referiu-se à escolha de uma impressão ou efeito a ser
obtido; e aqui bem posso observar que, através de toda a elaboração, tive
firmemente em vista o desejo de tornar a obra apreciável por todos. Seria levado
longe demais de meu assunto imediato se fosse demonstrar um ponto sobre o
qual tenho repetidamente insistido e que, entre poetas, não tem a menor
necessidade de demonstração; refiro-me ao ponto de que a Beleza é a única
província legítima do poema. Poucas palavras, contudo, para elucidar meu
verdadeiro pensamento, que alguns de meus amigos tiveram inclinação para
interpretar mal. O prazer que seja ao mesmo tempo o mais intenso, o mais
enlevante e o mais puro é, creio eu, encontrado na contemplação do belo.
Quando, de fato, os homens de Beleza querem exprimir, precisamente, não uma
qualidade como se supõe, mas um efeito; referem-se, em suma, precisamente
àquela intensa e pura elevação da alma - e não da inteligência ou do coração - de
que venho falando e que se experimenta consequência da contemplação do
"belo". Ora, designo a Beleza como a província do poema simplesmente porque é evidente regra dearte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas que os objetivos deveriamser alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los. E ninguém houveainda bastante tolo para negar que a elevação especial a que aludi é maisprontamente atingída num poema.
Quanto ao objetivo Verdade, ou a satisfaçãodo intelecto, e o objetivo Paixão, ou a excitação do coração, são eles muito mais
prontamente atingíveis na prosa, embora também até certa extensão, na poesia. A
Verdade, de fato, demanda uma precisão, e a Paixão uma familiaridade (o
verdadeiramente apaixonado me compreenderá) que são inteiramente
antagônicas daquela beleza que, asseguro, é a excitação ou a elevação agradável
da alma. De modo algum se segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão , e
mesmo a verdade, não possam ser introduzidas, proveitosamente introduzidas
até, num poema, porque elas podem servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral,
como as discordâncias em música, pelo contraste; mas o verdadeiro artista
sempre se esforçará em primeiro lugar, para harmonizá-las na submissão
conveniênte ao alvo predominante e, em segundo lugar, para revesti-las, tanto
quanto possível, daquela Beleza que é a atmosfera e a essênciia do poema.
Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se
referia ao tom de sua mais alta manifestação e todas as experiências têm
demonstrado que esse tom é o da tristeza.
A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo invariavelmente
provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legitimo de
todos os tons poéticos. Estando assim determinados a extensão, a província e o
tom entreguei-me à indução normal, a fim de obter algum efeito artistico agudo
que me pudesse servir de nota-chave na construção do poema, algum eixo sobre
que toda a estrutura devesse girar. Passando cuidadosamente em revista todos
os efeitos artísticos usuais - mais propriamente, situações, no sentido teatral não
deixei de perceber de imediato que nenhum tinha sido tão universalmente
empregado como o do refrão. A universalidade desse emprego bastou para me
assegurar de seu valor intrínseco e evitou-me a necessidade de submetê-lo à
análise. Considerei-o, contudo, em à sua suscetibilidade de aperfeiçoamento e vi
logo que achava num estado primitivo. Como é comumente usado, o refrão
poético ou estribilho não só se limita ao verso lírico, mas depende para
impressionar, da força da monotonia, tanto no som como na idéia. O prazer
somente se extrai pelo sentido de identidade, de repetição. Resolvi fazer
diversamente, e assim elevar o efeito, em geral, à monotonia do som, porém
continuamente variando na idéia; isto é, decidi produzir continuamente novos
efeitos pela variação da aplicação do estribilho, permanecendo este, na maior
parte das vezes, invariável.
Assentados tais pontos, passei a pensar sobre a natureza de meu refrão. Desde
que sua aplicação deveria ser repetidamente variada, era claro
que esse refrão deveria ser breve, pois haveria insuperável dificuldades na
aplicação de qualquer sentença extensa. Em proporção à brevidade da sentença
estaria, naturalmente, a facilidade da variação. Isso imediatamente me levou a uma
só palavra como o melhor refrão.
Sucitou-se, então, a questão do caráter da palavra. Tendo-me inclinado por um
refrão, a divisão do poema em estâncias surgia, naturalmente, como corolário,
formando o refrão o fecho de cada estância. Não cabia dúvida de que tal fecho,
para ter força, devia ser sonoro e suscetível de ênfase prolongada e tais
considerações inevitavelmente me levaram ao o prolongado, como a mais sonora
vogal, em conexão com o r, como a consoante mais aproveitável. Ficando assim
determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra que
encerrasse esse som e, ao mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a
melancolia predeterminada com o tom do poema. Em tal busca teria sido
absolutamente impossível que escapasse a palavra nevermore(2) De fato, foi ela a
primeira que se apresentou.
O desiderato seguinte era um pretexto para o uso contínuo da nevermore (nunca
mais). Observando a dificuldade que já encontrara em inventar uma razão
suficientemente plausível para sua contínua repetição, não deixei de perceber que
essa dificuldade nascia somente da presunção de que a palavra devia ser
contínua ou manotonamente pronunciada por um ser humano. Não deixei de de
perceber, em suma, que a dificuldade estava em conciliar essa monotonia com o
exercício da razão por parte da criatura que repetisse a palavra. Daí, pois, ergueu-
se imediatamente a idéia de uma criatura não racional, capaz de falar, e muito
naturalmente foi sugerido de início, a de um papagaio, que foi logo substituida
pela de um corvo, como igualmente capaz de falar e infinitamente mais em relação
com o tom pretendido.
Eu já havia chegado à idéia de um corvo, a ave do mau agouro, repetindo
monotonamente a expressão "nunca mais" na conclusão cada estância de um
poema de tom melancólico e extensão de cerca de cem linhas. Então, jamais
perdendo de vista o objetivo - o superlativo, ou a perfeição em todos os pontos -,
perguntei-me: De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão
universal da humanidade, é o mais melancólico?" A Morte - foi a resposta mais
evidente. "E quando - insisti - esse mais melancólico dos temas se torna o mais
poético?" Pelo que já explanei, um tanto prolongadamente, a resposta também ai
era evidente: "Quando ele alia mais de perto à Beleza; a morte, pois, de uma bela
mulher é inquestionavelmente, o mais poético tema do mundo e, igualmente a
boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu
amor."
(2) Na tradução portuguesa para esta edição foi empregada a expressão "nunca
mais - que também é capaz de produzir efeitos bem semelhantes aos desejados
pelo autor. (N. T.)
Tinha, pois, de combinar as duas idéias: a de um amante lamentando sua morta
amada e a de um corvo continuamente repetindo a locução "nunca mais". E tinha
de combiná-las tendo em mente meu propósito de variar, a cada vez, a aplicação
da palavra repetida; mas a única maneira inteligível de tal combinação era a de
imaginar o corvo empregando a palavra em resposta às perguntas do amante. E
então aí vi, imediatamente, a oportunidade concedida para o efeito do qual eu
tinha estado dependente, isto é, o efeito da variação da aplicação. Vi que poderia
fazer da primeira pergunta apresentada pelo amante - a primeira pergunta a que
o deveria responder "nunca mais" -' que poderia fazer dessa primeira pergunta
um lugar-comum; da segunda uma expressão menos comum; da terceira ainda
menos, e assim por diante, até que o amante, arrancado de sua displicência
primitiva pelo caráter melancólico da própria palavra, pela sua freqüente repetição
e pela consideração da sinistra reputação da ave que a pronunciava fosse afinal
excitado à superstição e loucamente fizesse pergutas de espécie muito diversa,
perguntas cuja resposta lhe interessavam apaixonadamente ao coração, fazendo-
as num misto de superstição daquela espécie de desespero que se deleita na
própria tortura fazendo-as não porque propriamente acreditasse no caráter
profético ou demoníaco da ave (que a razão lhe diz estar apenas repetindo uma
lição aprendida rotineiramente), mas porque experimentaria um frenético prazer
em organizar suas perguntas para receber o esperado "nunca mais" a mais
deliciosa, porque a mais intolerável das tristezas. Percebendo a oportunidade
que assim se me oferecia - ou, mais estritamente, que se me impunha no
desenrolar posição -, estabeleci na mente o climax ou a pergunta conclusiva:
aquela pergunta de que o "nunca mais" seria, pela última vez a resposta, aquela
pergunta em resposta à qual o "nunca mais " envolveria a máxima concentração
possível de tristeza e de desespero.
Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo: pelo fim , por onde devem
começar todas as obras de arte; porque foi nesse ponto de minhas
considerações prévias que, pela primeira vez tomei do papel e da pena para
compor a estância:
"Prophet", said I, "thing of devíl! - prophet still, if bird or devil!
By that heaven that bends above us - by that God we both adore
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall ctasp a sainted maiden whom the angels name Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenora.
Quoth the Raven "Nevermore" (3)
(3) "Profeta! exclamo. Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal! / Pelo alto céu
alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais, / fala se esta alma sob o
guante atroz da dor, no Éden distante, / verá a deusa fulgurante a quem nos céus
chamam Lenora, / essa, mais bela do que a aurora, a céus chamam Lenora!" E o
Corvo disse: "Nunca mais!"
Compus essa estância, nesse ponto, primeiramente porque, estabelecendo o
ponto culminante, melhor poderia variar e graduar, no que se refere à seriedade e
importância, as perguntas precedentes do amante; e, em segundo lugar, porque
poderia definitivamente assentar o ritmo, o metro, a extensão e o arranjo geral da
estância, como graduar as estâncias que a deviam preceder, para que nenhuma
delas pudesse ultrapassá-la em seu efeito rítmico. Tivesse eu sido capaz, na
composição subseqüente, de construir estâncias mais vigorosas, não teria
hesitações em enfraquecê-las propositadamente, para que não interferissem com
o efeito culminante.
E aqui bem posso dizer algumas palavras sobre versificação. Meu primeiro
objetivo, como de costume, era a originalidade. A amplitude com que esta tem
sido negligenciada na versificação é uma das coisas mais inexplicáveis do
mundo. Admitindo-se que haja pequena possibilidade de variedade no ritmo,
permanece claro, que as variedades possíveis do metro e da estância são
absolutamente infinitas; e, contudo, durante séculos, nenhum homem , em verso,
jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer uma coisa original. A verdade é que a
originalidade (a não ser em espíritos de força muito comum) de modo algum é
uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encon-
trada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente e, embora seja um
mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que
negação.
Sem dúvida, não pretendo que haja qualquer originalidade, quer no ritmo, quer no
metro de O Corvo.(4) O primeiro é trocaico, e o segundo octâmetro acatalético,
alternando-se com um heptâmetro catalético repetido no refrão do quinto verso, e
terminando com um tetrâmetro catalético. Falando menos pedantescamente, o pé
empregado no poema (troqueu) consiste de uma sílaba longa, seguida por uma
curta; o primeiro verso da estância compõe-se de oito desses pés; o segundo, de
sete e meio (de fato, dois terços); o terceiro de oito; o quarto de sete e meio; o
quinto de sete e meio; e o sexto de três e meio. Ora, cada um desses versos,
tomado separadamente, tem sido empregado antes, mas a originalidade que O
corvo tem está em sua combinação na estância, nada já havendo sido tentado que
mesmo remotamente se aproximasse dessa combinação. O efeito dessa
originalidade de combinação é ajudado por outros efeitos incomuns, alguns
inteiramente novos, oriundos de uma ampliação da aplicação dos princípios de
rima e de aliteração.
O ponto seguinte a ser considerado era o modo de juntar o amante e o corvo, e o
primeiro ramo dessa consideração era o local. Para isso, a sugestão mais natural
seria a de uma floresta, ou a dos campos; mas sempre me pareceu que uma
circunscrição fechada
(4) A explicação da forma utilizada refere-se, é evidente, ao original inglês.
Na tradução portuguesa de que nos estamos valendo, por motivos óbvios, o
metro e o ritmo são outros, embora com a preocupação de se aproximarem, o
máximo possível, do original. (N. T.)
do espaço é absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado e
tem a força de uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral para
conservar concentrada a atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com a
mera unidade de lugar.
Determinei, então, colocar o amante em seu quarto - num quarto para ele sagrado
pela recordação daquela que o freqüentara. O quarto é apresentado como
ricamente mobiliado, isso na simples continuação das idéias que eu já tinha
explanado a respeito da beleza como a única verdadeira tese poética.
Tendo sido assim determinado o local, tinha agora de introduzir a ave, e o
pensamento de introduzi-la pela janela era inevitável .
A idéia de fazer o amante supor, em primeiro lugar, que o tatalar das asas da ave
contra o postigo é um "batido" à porta originou-se dum desejo de aumentar, pela
prolongação, a curiosidade do leitor e dum desejo de admitir o efeito casual
surgindo do fato de amante abrir a porta, achar tudo escuro e depois aceitar a
semi-fantasia de que fora o espírito de sua amada que batera.
Fiz a noite tempestuosa, primeiro para explicar por que o corvo procurava entrar
e, em segundo lugar, para efeito de contraste com a serenidade (física) que
reinava dentro do quarto.
Fiz o pássaro pousar no busto de Minerva, também para efeito de contraste entre
o mármore e a plumagem - sendo entendido que o busto foi absolutamente
sugerido pelo pássaro; escolhi o busto de Minerva, primeiro, para combinar mais
com a erudição do e, em segundo lugar, pela sonoridade da própria palavra
Minerva.
Pelo meio do poema, também, aproveitei-me da força do contraste, tendo em vista
aprofundar a impressão derradeira. Por exemplo um ar do fantástico -
aproximando-se o mais possível do burlesco é dado à entrada do corvo. Ele entra
"em tumulto, a esvoaçar " Not the Ieast obeisance made he - not a moment stoped
or stayed, he But with mien of lord or lady, perched obove e my chamber, door.
Perched upon a bust of Pollas just above my chamber door. (5)
Nas duas estâncias que se seguem, esse desígnio é ainda mais evidentemente
salientado:
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling
By the grave and stern decorum oi the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven thou", I sad, "Ort sure no craven
Ghastly gim and and ancient Raven wandering from the nightly shore
TeIl me what thy Iordly name is on the Night's Plutonian shore?"
Quoth the Raven " Nevermore"
(5) Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto, pousa sobre
o busto - uma escultura de Minerva, / bem sobre a porta e se conserva ali, no
busto de Minerva.
(6) Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura, / desperta em mim um leve
riso, a distrair-me de meus ais./ "Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" -
então lhe digo - / "não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo /
qual é o teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!" / E o Corvo
disse. "Nunca mais!"
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly
Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door -
Bird or beast upon tlie aculptured bust above his chamber door,
With such name as "Nevermore".(7)
Sendo assim assegurado o efeito do desenvolvimento; imediatamente troquei o
fantástico por um tom da mais profunda seriedade, começando esse tom na
estância imediatamente seguinte à última citada, com o verso:
The Raven, sitting lonely on that placid bust spoke only, etc. (8)
Daí para a frente, o amante não mais zomba, não mais vê qualquer coisa de
fantástico na conduta do Corvo. Fala dele como horrendo, torvo, ominoso e
antigo", sentindo "da ave, incandescente o olhar" queimá-lo "fixamente". Essa
revolução do pensamento ou da imaginação, da parte do amante, destina-se a
provocar uma semelhante da parte do leitor, levar o espírito a uma disposição
própria para o desenlace, que é agora completado tão rápida e diretamente quanto
possível.
Com o desenlace conveniente, com a resposta do corvo "Nunca mais" à pergunta
final do amante sobre se ele encontraria sua amada em um outro mundo, o
poema, em sua fase evidente, que é a de simples narrativa, pode ser considerado
como completo. Até aí tudo está dentro dos limites do explicável, do real. Um
corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer apenas a palavra Nevermore, e
tendo escapado à vigilância de seu dono, é levado à meia-noite, em meio à
violência de uma tempestade, a buscar entrada numa janela pela qual se vê ainda
a luz brilhar: a janela do quarto de um estudante ocupado entre folhear um
volume e sonhar com uma adorada amante morta. Sendo aberta a janela, ao
tumultuar das da ave, esta pousa no sítio mais conveniente e fora do alcance
imediato do estudante que, divertido pelo incidente e pela extravagancia das
maneiras do visitante, pergunta-lhe, de brinquedo e sem esperar resposta, por
seu nome. O corvo interrogado responde com o seu costumeiro Nevermore,
palavra que logo encontra eco no coração melancólico do estudante que, dando
expressão, em voz alta a certos pensamentos sugeridos pelo momento, é de
novo surpreendido pela repetição do Nevermore do corvo. O estudante adivinha
então a real causa do acontecimento, mas é impelido, como já explanei, pela sede
humana de autotortura e, em parte, pela superstição, a propor questões tais à ave
que só lhe trarão, ao amante, o máximo da volúpia da tristeza, graças à esperada
palavra "Nunca mais". Levando até o extremo essa autotortura,
(7) Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe, / misteriosa esfinge
negra, a retorquir-me em termos tais; / pois nunca soube de vivente algum,
outrora ou no presente, / que igual surprêsa experimente: a de encontrar, em sua
porta / uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta, / e que se
chama "Nunca mais".
(8) Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria, etc.
a narração, naquilo que denominei sua fase primeira ou evidente tem um fim
natural e até aí não ultrapassou os limites do real.
Mas nos assuntos assim manejados, por mais agudamente o sejam, por mais
vivas riquezas de incidentes que possuam há sempre certa dureza ou nudez que
repele o olhar artístico. Duas coisas são invariavelmente requeridas:
primeiramente, certa soma de complexidade ou, mais propriamente, de
adaptação; e, em segundo lugar, certa soma de sugestividade, certa subcorrente,
agora indefinida, de sentido. Esta última, afinal, é que dá a uma obra de arte tanto
daquela riqueza (para tirar da conversação cotidiana um termo eficaz) que
gostamos demais de confundir com o ideal.
É o excesso do sentido sugerido, é torná-lo a corrente superior em vez da
subcorrente do tema que transforma em prosa (e prosa da mais chata espécie) a
assim chamada poesia dos assim chamados transcendentalistas.
Mantendo essas opiniões, ajuntei duas estâncias que concluem o poema, sendo
sua sugestividade destinada a penetrar toda narrativa que as precede. A
subcorrente de significação torna-se primeiramente evidente no verso.
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door.
Quoth the Raven "Nevermore "
Deve-se observar que as palavras "o peito" envolvem a expressão metafórica no
poema. Elas, com a resposta "nunca mais " dispõem a mente a buscar uma moral
em tudo quanto foi anteriormente narrado. O leitor começa agora a encarar o
corvo como simbólico; mas não é senão nos versos finais da última estância que
se permite distintamente ser vista a intenção de torná-lo um emblema da
Recordação lutuosa e infindável:
And lhe Raven, never fIitting, still is sitting l is sitting,
On the palIid bust ol Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamplight o'er him streaming throws his shadow on the floor
And my soul from oul that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore.
(9) Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!" / E o corvo disse:
"Nunca mais!"
(10) "E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio, / sobre o alvo busto
de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais. / No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme, / e a luz da lâmpada, disforme atira ao chão a sua sombra. / Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa a sombra, /não há de erguer-se, ai! nunca mais!
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