sábado, 15 de maio de 2010

O VISIONÁRIO

O VISIONÁRIO(1)

Fica a esperar-me ali! não deixarei de te encontrar nesse profundo vale. HENRY
King, Bispo de Chichester: Elegia sobre a morte de sua mulher.

MALFADADO E MISTERIOSO HOMEM! Desnorteado no esplendor de sua própria
fantasia e tombado nas chamas de tua própria juventude! De novo, na imaginação
eu te contemplo! Mais uma vez teu vulto se ergueu diante de mim... Não, não como
te encontras, no frio vale, na sombra!, mas como deverias estar, dissipando uma
vida de sublimes meditação naquela cidade de sombrias visões, tua própria
Veneza, que é um Eliseu do mar querido das estrelas, onde as amplas janelas dos
palácios paladinos contemplam, com profunda e amarga reflexão, os segredos de
suas águas silenciosas. Sim, repito-o como deverias estar! Há seguramente
outros mundos que não este…outros pensamentos que não os pensamentos da
multidão... outras especulações que não as especulações dos sofistas. Quem
discutirá então tua conduta? Quem te censurará por tuas horas visionárias, ou
denunciará aquelas ocupações como uma perda de vida, quando eram apenas a
super abundância de tuas energias eternas?.
Foi em Veneza, por baixo da arcada coberta que chamam a Ponte di Sospiri que
encontrei, pela terceira ou quarta vez, a pessoa de quem falo. É com uma confusa
recordação que trago à mente as circunstâncias daquele encontro. Contudo,
recordo.. . ah, como poderia  esquecer!. .. a profunda treva da meia-noite, a Ponte
dos Suspiros, a beleza de mulher e o Gênio Romântico que palmilhava abaixo e
acima o estreito canal.
Era uma noite de insólita escuridão. O grande sino da Piazza havia soado a quinta
hora da noite italiana. O Largo do Campanile jazia silente e  deserto e as luzes, no
velho Palácio Ducal, iam rapidamente morrendo. Voltava eu para casa da
Piazzetta, através do Canal. Mas, quando minha gôndola chegou em frente à boca
do canal San Marco, uma voz feminina irrompeu subitamente os seus  recessos,
dentro da noite, num grito selvagem, histérico e interminável. Abalado pelo grito,
ergui-me, enquanto o gondoleiro, deixando deslizar seu único remo, perdeu-o
naquela escuridão

- nota de rodapé:
(1)  publicado pela primeira vez no Godey's Lady'z Book, janeiro de 1834. Este
conto é também conhecido com o titulo de "O Encontro Marcado" ( The
assignation ). Título original: The VISIONARY.
- fim da nota de rodapé.

de breu sem nenhuma possibilidade de recuperá-lo. Em conseqüência, ficamos
ao sabor da corrente, que ali existe vinda do grande para o pequeno canal. Como
um imenso condor de penas de areia éramos vagarosamente levados para a
Ponte dos Suspiros quando milhares de archotes acenderam-se nas janelas e nas
escadarias do  Palácio Ducal, transformando imediatamente toda aquela profunda
treva num dia lívido e sobrenatural.
Uma criança, escorregando dos braços de sua própria mãe, tinha caído de uma
das janelas de cima do elevado edifício dentro do fundo e sombrio canal. As
águas tranquilas haviam-se fechado placidamente, sobre sua vitima; e, embora
minha gôndola, fosse a  única à vista, muitos nadadores ousados já se achavam
água procurando em vão, na superfície, o tesouro que, infelizmente  apenas
deveria ser encontrado dentro do abismo. Sobre as negras lajes de mármore, à
entrada do palácio, e a poucos passos acima da água, estava de pé um vulto que
ninguém que o visse poderia daí por diante esquecer. Era a Marquesa Afrodite,
adorada por Veneza inteira, a mais alegre das criaturas alegres, a mais bela onde
todas eram belas,   mas também a jovem esposa do velho e intrigante Mentoni e a
mãe daquela linda criança, seu primeiro e único filho, que agora, mergulhado nas
águas lobregas, pensava cheio de amargura o coração, nas doces carícias de sua
mãe e exauria sua pequenina vida lutando por chamá-la.
Ela permanecia só. Seus pequeninos pés nus e prateados cintilavam no espelho
negro do mármore sobre que pousavam. Seu cabelo, ainda mal desnastrado dos
seus enfeites de baile para o sono da noite, enrolava-se, entre um chuveiro de
diamantes, em torno de sua cabeça de linhas clássicas, em cachos como os de
jacinto em botão. Uma túnica de gaze, branca como a neve, parecia ser a única
coisa que lhe cobria as formas delicadas; mas o ar daquela meia-noite de verão
era quente, soturno e silencioso, e nenhum movimento, naquela forma estatuária,
agitava mesmo as dobras daquele vestuário vaporoso, que a envolvia como o
pesado mármore envolve Níobe . Contudo - estranho é dizê-lo! Seus grandes e
brilhantes olhos não estavam voltados para baixo, para aquela sepultura onde
jazia mergulhada sua mais brilhante esperança, mas fixavam-se numa direção
completamente diversa.  A prisão da Velha República é, penso eu, o mais
majestoso edifício de toda Veneza. Mas como poderia aquela mulher olhar tão
fixamente para ele, quando abaixo dela estava-se extinguindo seu próprio filho?
Aquele sombrio e lúgubre nicho também escancarava justamente diante da janela
de seu quarto. Que, pois, poderia haver  nas suas sombras, na sua arquitetura,
nas suas cornijas solene, cingidas de hera que a Marquesa de Mentoni não
houvesse contemplado antes, milhares de vezes? Absurdo! Quem não se lembra
q em ocasiões como esta, os olhos, como um espelho partido, multiplicam as
imagens de seu pesar e vêem, em numerosos lugares distantes, a desgraça que
está ali próxima?
Muitos passos acima da marquesa e sob o arco do portão que dava para a água,
estava de pé, em trajes de gala, a própria figura

sátiro de Mentoni. Ele se achava, na ocasião, ocupado em arranhar uma guitarra e
parecia mortalmente aborrecido quando, a intervalos dava ordens para o
salvamento de seu filho. Estupefato e horrorizado, eu mesmo não tinha forças
para mover-me da posição ereta que tomara ao ouvir o primeiro grito e devo ter
apresentado à vista do grupo agitado, um aspecto espectral e sinistro quando
lívido e de membros rígidos, flutuava entre eles naquela funerária gôndola.

Todos os esforços resultaram vãos. Muitos dos mais enérgicos na busca tinham
relaxado suas diligências e entregavam-se a um sombrio pesar . Parecia haver
pouca esperança de salvar a criança ( e quão muito menos para a mãe!). Mas
então, do interior daquele escuro nicho já mencionado, como fazendo parte da
prisão da Velha República - e fronteiro ao postigo da marquesa,  um vulto, envolto
numa capa adiantou-se para dentro do círculo de luz  e detendo-se por um
instante à beira da descida vertiginosa, mergulhou de cabeça para baixo no canal.
Quando, um instante depois, ele se ergueu com a criança ainda viva e a respirar
entre seus braços sobre as lajes de mármore ao lado da marquesa, sua capa,
pesada da água que a embebia , desabotoou-se, e , caindo em pregas, em volta de
seus pés, descobriu aos olhos dos espectadores, tomados de surpresa, a figura 
graciosa de um homem muito jovem, cujo nome repercutia na maior parte da
Europa. O salvador, nenhuma palavra pronunciou. Mas a marquesa... Receberá
agora seu filho! Apertá-lo-á de encontro ao coração, abraçar-se-á estreitamente ao
seu pequeno corpo e o cobrirá de carícias! Mas ai! os braços de outrem tomaram-
no das mãos do estrangeiro; os braços  de outrem tinham-no levado, tinham-no
conduzido para longe, despercebidamente, para dentro do palácio! E a
marquesa?.

Seus lábios, seus lindos lábios tremem; o pranto inunda-lhe os olhos, naqueles
olhos que, como o acanto de Plínio, eram "macios e quase líquidos. " Sim, o
pranto inunda aqueles olhos e - vede! - aquela mulher treme até a alma. . . a
estátua recuperou a vida! O palor do rosto  marmóreo, a marmórea turgescência
dos seios e a alvura imácula dos pés marmóreos vemo-los, de súbito,
enrubescidos por uma onda de incoercível vermelhidão. E um leve tremor lhe
agita as delicadas formas como a brisa em Nápoles agita os lírios prateados que
brotam dentre a relva.
Porque enrubesceu aquela mulher? Para esta pergunta não há ,resposta, exceto
que, tendo deixado, com a pressa ávida e com o terror de um coração de mãe a
intimidade da sua alcova, tinha-se esquecido de prender os delicados pés nas
sandálias e completamente deixado de lançar sobre seus ombros venezianos
aquela túnica que eles mereciam. . . Qual outra  possível razão haveria para que
ela enrubescesse? para o lampejo selvagem daqueles olhos fascinantes? para o
insólito tumulto daquele seio arfante? para a convulsa pressão daquela mão
trêmula, aquela mão que caiu, acidente, quando Mentoni voltou para dentro do
palácio, sobre a mão do estrangeiro? Que razão poderia haver para o som baixo,
singularmente baixo, daquelas ininteligíveis palavras que a mulher
apressadamente murmurou, ao dizer-lhe adeus?
Venceste - disse ela, ou os murmúrios da água me enganaram. - Venceste... Uma
hora depois do sol nascer... encontraremos... está combinado!

O tumulto se extinguira. As luzes se apagaram dentro do palácio e o estrangeiro, a
quem eu agora reconhecia, ficara só sobre s lajes. Tremia inconcebivelmente
agitado e seus olhos busca ao redor uma gôndola. Não pude deixar de oferecer-
lhe os serviços da  minha e ele aceitou o obséquio. Tendo arranjado um remo
perto do portão, seguimos juntos até sua residência, enquanto ele rapidamente,
recuperava o domínio de si mesmo e se referia ao nosso antigo e leve
conhecimento, em termos aparentemente de grande cordialidade.
Há alguns pontos a respeito dos quais tenho prazer em ser minucioso. A pessoa
do estrangeiro - deixe-me assim chamar quem para todo mundo era ainda um
estrangeiro -, a pessoa do estrangeiro é um desses pontos. Seu porte era mais
abaixo do que acima da altura média, embora em momentos de intensa paixão
seu corpo como que se expandia e desmentia o asserto. A fraca e quase delgada
conformação de seu vulto era mais adequada à pronta atividade que demonstrara
na Ponte dos Suspiros do que à força hercúlea que, se sabe, ele revelara sem
esforços, em ocasiões de mais perigosa emergência. Com a boca e o queixo de
um deus, olhos estranhos, selvagens, amplos, líquidos, cujas sombras variam  do
puro castanho ao intenso e brilhante azeviche; bastos cabelos negros e
cacheados, dentre os quais brilhava uma fronte, a intervalos, toda luminosa e
ebúrnea, uma fronte de insólita amplitude; eram feições estas, cuja regularidade
clássica eu jamais vira, a não ser talvez as feições marmóreas do Imperador
Cômodo. Contudo sua  fisionomia não era dessas que os homens fixam para
sempre . Não  tinha expressão característica, nem predominante, para se gravar 
na memória; uma fisionomia vista e instantaneamente esquecida, mas esquecida 
com um vago e incessante desejo de reevocá-la à   recordação. Não porque o
espírito de qualquer rápida paixão deixasse, a qualquer hora, de mostrar sua
imagem distinta no espelho daquela face; mas porque o espelho, sendo espelho,
não retinha vestígios da paixão quando a paixão se dissipava.
Ao deixá-lo, na noite de nossa aventura, solicitou-me ele, duma maneira que
reputei urgente, que o visitasse bem cedo na manhã seguinte. Logo depois do
amanhecer, achei-me, por conseguinte, em seu palazzo, um daqueles imensos
edifícios de sombria porém, fantástica majestade que se erguem por cima das
águas do Grande Canal, nas vizinhanças do Rialto. Subindo por uma larga
escadaria  circular de mosaicos, entrei num aposento cujo esplendor inigualável
flamejava pela porta aberta, numa verdadeira cintilação que me tornava cego e
entontecido, pela sua faustosidade.
Verifiquei que meu conhecido era rico. O que eu ouvira a respeito de suas posses
me parecera uma exageração ridícula. Mas, ao
olhar em torno de mim, não podia ser levado a acreditar que a riqueza de qualquer
súdito europeu pudesse suprir a principesca  magnificência que flamejava e
resplandecia ali.
Embora, como disse, o sol já se tivesse erguido, o quarto ainda se achava
brilhantemente iluminado. Julgo, por esta circunstância bem como pelo ar de 
cansaço de meu amigo, que ele não se deitara  durante toda a noite precedente.
Na arquitetura e embelezamentos do quarto, o objetivo evidente  fora o de
deslumbrar e espantar. Pouca atenção se dera à decoração do que é
tecnicamente chamado de "harmonia", ou ás características de nacionalidade. O
olhar vagava do um objeto a outro e não se fixava em nenhum, nem nos
grotesques dos pintores gregos, nem nas esculturas das melhores épocas
italianas, nem nas imensas inscrições do primitivo Egito. Ricas tapeçarias, por
toda parte do  quarto, tremiam à vibração de uma música suave e melancólica 
cuja origem não podia ser descoberta. O olfato era sufocado pela mistura de
perfumes heterogêneos que se exalavam de estranhos  incensários retorcidos,
juntamente com numerosas e agitadas línguas flamejantes dum fogo de
esmeralda e violeta. Os raios do sol,  que acabava de nascer, banhavam todo o
quarto através das janelas formadas, cada uma, de simples peça de vidro cor-de-
rosa. Cintilando para lá e para cá, em mil reflexos, das cortinas que pendiam de
suas cornijas como cataratas de prata derretida, os raios da luz  natural
misturavam-se por fim, caprichosamente, com a luz artificial e rolavam, em
massas avassaladoras, sobre um tapete de um  rico tecido, que parecia o ouro
líquido do Chile.
Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! - riu o proprietário, apontando-me  uma cadeira, quando eu
entrei no quarto, e lançando-se  de costas, a fio comprido, sobre uma otomana. -
Vejo -    disse ele, notando  que eu não podia imediatamente adaptar-me a
esquisitice de tão singular acolhida -, vejo que está atônito à vista de meu
aposento,  de minhas estátuas, de meus quadros, de minha originalidade, de
concepção em arquitetura e tapeçamento. . . Absolutamente embriagado, hein,
com a minha magnificência? Mas, perdoe-me, meu caro senhor (e aqui o tom de
sua voz encheu-se do verdadeiro espírito de cordialidade), perdoe-me a minha
descaridosa gargalhada. O senhor se mostrou tão extremamente atônito! Além
disso, algumas coisas há tão completamente ridículas que um homem deve rir  ou
morrer. Morrer rindo deve ser a mais gloriosa de todas as mortes gloriosas! Sir
Thomas More - e que homem inteligente era Sir Thomas More! - morreu rindo,
como o senhor se recorda. Também nos Absurdos de Ravisius Textor há uma
longa lista de personagens que tiveram o mesmo magnífico fim. O senhor sabe,
porém  - continuou ele, reflexivamente -, que em Esparta (que é agora 
Palaeochori), em Esparta, como disse, a oeste da cidadela, entre  um amontoado
de ruínas dificilmente visíveis, há uma espécie de soco, sobre o qual se lêem
ainda as letras "LASM". Fazem parte sem dúvida, da palavra "GELASMA". Ora, em
Esparta havia milhares de templos e santuários dedicados a milhares de
divindades diferentes. Como é excessivamente estranho que o altar do Riso tenha
a todos os outros! Mas, na presente circunstância - prosseguiu ele, com singular
alteração da voz e das maneiras -, não tenho o direito de alegrar-me à sua custa. O
senhor tinha bem razão de ficar admirado. A Europa não pode produzir qualquer
coisa tão bela como esta, este meu régio gabinete. Meus outros aposentos não
são, de modo algum, da mesma espécie; são meros de "ultras" de insipidez
elegante. Isto é melhor do que a moda, não é? Contudo, basta o que se está
vendo para provocar o despeito daqueles que só poderiam adquiri-lo à custa de
seu inteiro patrimônio. Tenho evitado porém, semelhante profanação. Com uma
exceção  apenas: e é o senhor a única criatura humana, além de mim mesmo e de
meu criado, a ser admitido dentro dos mistérios deste recinto imperial, desde que
ele foi adornado da maneira que o senhor vê...

Curvei-me, reconhecido, pois a dominante sensação de esplendor, o perfume  e a
música, juntamente com a inesperada excentricidade da fala e  das maneiras dele
impediam-me de exprimir, com palavras, aquilo  que eu compusera na mente
como um cumprimento.

- Aqui - continuou ele, levantando-se e apoiando-se no meu braço, enquanto
vagava pelo aposento -, aqui estão pinturas, desde os gregos até Cimabue, e de
Cimabue até a época atual. Muitas foram escolhidas, como vê, com pouco
respeito às opiniões da crítica da arte. Todas, porém, são tapeçarias adequadas a
um quarto como este. Aqui, também, há algumas obras-primas dos grandes
desconhecidos... e ali, desenhos inacabados de homens célebres na sua época e
cujos verdadeiros nomes a perspicácia das academias abandonou ao silêncio e a
mim. Que pensa o senhor - disse ele, voltando-se bruscamente, enquanto falava -,
que pensa o senhor  desta Madonna della Pietã?
- É do próprio Guido! - disse eu, com todo o entusiasmo de minha natureza, pois
tinha estado de olhos atentamente fixos sobre beleza  transcendente. - É do
próprio Guido! Como pôde obtê-la? É, indubitavelmente, em pintura, o que Vênus
é em escultura!…

- Ah! - disse ele pensativamente. -Vênus.. . a bela Vênus... A Vênus dos Médicis? A
de cabeça pequena e de cabelo dourado? Parte do braço esquerdo (aí sua voz se
abaixou, a ponto de ser ouvida com dificuldade) e todo o braço direito são
restaurações; e no amaneirado daquele braço direito se encontra, penso eu, a
quinta-essência de toda a afetação. Para mim, a Vênus de Canova! O próprio Apolo,
também, é uma cópia... não pode haver dúvida... Oh, louco, estúpido cego que eu
sou, que não posso apreender a ostentosa inspiração  do Apolo! Não posso
deixar - pobre de mim -, não posso deixar de preferir o Antinous. Não foi Sócrates
quem disse que  o        escultor descobre sua estátua no bloco de mármore? Por isso
Miguel Ângelo não foi, de modo algum, original nos seus versos:
Non ha l'ottimo artista alcun Concetto
che un marmo solo in se non circunscriva.(2)

- nota de rodapé:
(2) Não tem o ótimo artista algum conceito / que um mármore só em si não
circunscreva. (N. T.)
- fim de nota de rodapé.

Tem sido ou deveria ter sido notado que na maneira dos verdadeiros homens de
gosto nós sempre estamos cônscios de uma diferença do procedimento do
homem vulgar, sem sermos imediata  e precisamente capazes de determinar em
que consiste tal diferença.  Admitindo que a observação se aplicasse em todo o
seu vigor à  conduta estranha de meu conhecido, sentia, naquela manhã cheia de
acontecimentos, que ela era mais plenamente aplicável ainda ao seu
temperamento moral e ao seu caráter. Nem posso eu melhor  definir aquela
peculiaridade de espírito que parecia colocá-lo tão essencialmente a parte de
todos os outros seres humanos do que chamando-a um hábito de intenso e
continuo pensamento, tomando  conta até mesmo de suas mais triviais ações,
intrometendo-se seus momentos de ócio e interferindo nas suas explosões de
alegria  como serpentes que irrompem dos olhos das máscaras careteantes  nas
cornijas que cercam os templos de Persépolis.
Não podia deixar, porém, de repetidas vezes observar, através do tom de
misturada leviandade e solenidade com que ele rapidamente comentava assuntos
de pouca importância, certo ar de trepidação, um grau de fervor nervoso no agir e
no falar, certa inquieta excitabilidade de maneiras que a mim me parecia, a todo
tempo inexplicável e, em algumas ocasiões mesmo, me alarmava.
Freqüentemente, também, parando em meio de uma frase cujo começo tinha 
sido, na aparência, esquecido, parecia estar escutando em meio da mais profunda
atenção, como se esperasse, de momento, um visitante ou ouvisse sons que só
deviam ter existência na sua imaginação.
Foi durante um desses devaneios ou pausas de aparente abstração  que,
passando uma folha da bela tragédia do poeta e erudito Policiano, Orfeu (a
primeira tragédia original italiana), que estava  ao meu lado sobre uma otomana,
descobri um trecho sublinhado a  lápis. Era uma passagem, já no fim do terceiro
ato, uma passagem  da mais excitante comoção, uma passagem que, embora tinta
de  impureza, nenhum homem lerá sem um arrepio de nova emoção; e nenhuma
mulher sem um suspiro. A página inteira estava manchada de lágrimas recentes e,
na página oposta, viam-se os seguintes versos em  ingleses, escritos numa
caligrafia tão diferente da letra característica de meu conhecido que tive alguma
dificuldade em reconhecer como de seu próprio punho:

Tudo quanto anelei foste, amor,
tudo quanto minha alma queria:
ilha verde nos mares, amor,
templo, fonte que límpida fluía
num jardim de encantado primor
onde a mim cada flor pertencia.
Ah, o sonho fulgiu demais, para
persistir! Foi anseio estrelado
que morreu, mal surgira e brilhara!
Diz-me "Avante" o Futuro em voz clara;
não o escuto! Somente o Passado
(triste abismo) é que o espírito encara,
mudo, lívido, petrificado.
Sim, a luz me fugiu desta vida!
Foi-se a chama! Ficaram-me os ais.
Nunca mais, nunca mais, nunca mais
(ah! com essas palavras fatais
fala às praias a vaga abatida),
 fronde ao raio tombada, jamais
te hás de erguer, nem tu, águia ferida!
E meus dias em êxtases passo,
e meu sonho procura no espaço
teu olhar, onde quer que o escondas,
e o fulgor de teus rastros, o traço
de teus pés, em celestes, mil rondas,
junto a eternas, incógnitas ondas.

Causou-me pouca surpresa que aqueles versos estivessem escritos em inglês,
língua que eu não acreditava fosse do conhecimento de seu autor. Mas também
estava certo da extensão de seus conhecimentos e do singular prazer que ele
experimentava em ocultá-lo à observação, para que me espantasse diante de
semelhante descoberta. O  lugar da data, porém, devo confessar, causou-me não
pequeno espanto. Fora originariamente de Londres e depois cuidadosamente 
riscado, não porém de modo eficiente para ocultar a palavra a um  olhar
escrutinador. Afirmo que isto me causou não pequeno espanto, pois bem me
recordo de que, em anterior conversa com meu amigo, inquiri particularmente
dele se havia se encontrado em  Londres, alguma vez, com a Marquesa de
Mentoni (que durante alguns anos, antes de seu casamento, havia residido
naquela cidade) quando sua resposta, se não me engano, deu-me a entender que
ele  nunca visitara a metrópole da Grã-Bretanha. Eu poderia, entretanto  aqui
mencionar que mais de uma vez ouvi (sem indubitavelmente dar crédito a um
boato, que implicava tantas improbabilidades ) que a pessoa de quem falo era,
não só de nascimento, mas de educação, inglês.

- Há um quadro - disse ele, sem saber que eu conhecia a tragédia- , há ainda um
quadro que o senhor não viu.
E afastando para um lado uma cortina, descobriu um retrato inteiro da Marquesa
Afrodite.
A arte humana nada mais podia ter feito no delinear-lhe a sobre-humana beleza. O
mesmo vulto etéreo que se erguera diante de mim na noite precedente sobre os
degraus do Palácio Ducal ali permanecia à minha frente, mais uma vez. Mas, na
expressão da fisionomia,  toda a cintilar de sorrisos, ali ainda se ocultava (anomalia incompreensível!) aquela caprichosa sombra de melancolia que sempre se
encontra como inseparável da perfeição do belo.
Seu braço direito dobrava-se sobre seu seio. Com o braço esquerdo apontava
para um vaso de formato estranho. Um pequeno e lindo pé, mal visível, tocava de
leve a terra; e, dificilmente discernível, na brilhante atmosfera que parecia cercar e
aureolar sua beleza, flutuava um par das mais delicadamente imaginadas asas.
Meu olhar desceu do quadro para o rosto de meu amigo e as vigorosas palavras do
Bussy d'Amboise, de Chapman, palpitaram-me, instintivamente, nos lábios:

Está de pé ali
Como uma romana estátua. E assim ficará
Até que a morte em mármore o transforme!
- Venha! - disse ele afinal, voltando-se para uma mesa de  prata maciça, ricamente
esmaltada, sobre a qual viam-se várias taças fantasticamente pintadas, ao lado de
dois grandes vasos etruscos talhados no mesmo extraordinário modelo do primeiro
 plano do  quadro, e cheios do que supunha eu ser Johannisberger. -
Venha! - disse ele, bruscamente -, bebamos! É cedo ainda, mas bebamos! É
realmente cedo - continuou ele, reflexivamente, quando  um querubim, com um
pesado martelo de ouro, fez o aposento retinir com a primeira hora depois do
nascer do sol. - É realmente cedo... Mas, que importa? Bebamos! Façamos uma
libação àquele  solene sol que essas brilhantes lâmpadas e incensários estão tão
ávidos de dominar!
E, tendo-me feito brindá-lo com um enorme copo, engoliu, em rápida sucessão,
várias taças de vinho.
- Sonhar - continuou ele, no tom de sua inconstante conversa ao erguer, diante da
viva flama dum incensário, um dos magníficos  vasos -, sonhar tem sido a
ocupação de minha vida. Armei, pois, para mim, como vê, um camarim de sonhos.
Poderia construir um melhor no coração de Veneza? O senhor observa em torno
de si,  é verdade, uma mistura de adornos arquitetônicos. A castidade da lônia é
ofendida pelas inscrições antediluvianas e as esfinges do  Egito se estendem
sobre tapetes dourados. Contudo, o efeito só é incongruente para o tímido.
Conveniências de lugares, e especialmente de tempo, são os fantasmas que
afastam a humanidade aterrorizada da contemplação do magnificente. Fui outrora
decorador mas esta sublimação do disparate embotou a minha alma. Tudo isto é
agora o mais apropriado para meu propósito. Como aqueles arabescados
incensários, meu espírito se estorce em labaredas e o delírio desta cena está-me
amoldando para as mais Insensatas visões daquela região de verdadeiros sonhos
para onde estou agora rapidamente partindo.
Aqui parou subitamente, inclinou a cabeça sobre o peito e pareceu escutar um
som que eu não podia ouvir. Por fim, erguendo o  busto, olhou para cima e
proferiu os versos do Bispo de Chichester:
Fica a esperar-me ali! Não deixarei
De te encontrar nesse profundo vale.
No momento seguinte, reconhecendo o poder do vinho, lançou-se,  a fio
comprido, sobre uma otomana.
Ouviu-se então um leve rumor de passos na escadaria, a que logo se seguiu
pesada pancada à porta. Apressava-me em evitar segunda interrupção, quando
um pajem da casa de Mentoni irrompeu pelo quarto e gaguejou, numa voz
embargada de emoção, incoerentes palavras:

- A minha senhora … a minha senhora.. . envenenada... formosa... oh formosa
Afrodite!
Atordoado, corri para a otomana e tentei despertar o adormecido  para que
soubesse a apavorante informação. Mas seus membros estavam rígidos, seus
lábios estavam lívidos, seus olhos, ainda pouco cintilantes, estavam revirados
pela morte. Recuei, cambaleante para a mesa. Minha mão caiu sobre uma taça
partida e enegrecida e a  consciência da completa e terrível verdade brilhou
subitamente na minha alma.

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