sábado, 15 de maio de 2010

O REI PESTE - CONTO ALEGÓRICO

O REI PESTE (1)
CONTO ALEGÓRICO

Os deuses suportam nos reis, e permitem, as coisas que odeiam em meio à rale.
BUCKHURST:     A Tragédia de Ferrex e Porrex.

Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro, durante o cavalheiresco
reinado de Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripulação do Free and
Easy (Livre e Feliz), escuna de comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o
Tâmisa, e então ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem
sentados na ala duma cervejaria da paróquia de Santo André, em Londres, a qual
tinha como insígnia a tabuleta dum "Alegre Marinheiro". embora mal construída,
enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros aspectos, semelhante às
demais tabernas daquela época, estava, não obstante, na opinião dos grotescos
grupos de freqüentadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a seu fim.


Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais
interessante, se não o mais notável.
O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se dirigia, chamando-o pelo
característico apelido de Legs (Pernas) era também o mais alto dos dois. Mediria
talvez uns dois metros e dez centímetros de altura e a inevitável consequência de
tão grande estatura se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de
altura era , porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era
excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir,
quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de
bujarrona, se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e outras de igual
natureza jamais produziam, evidentemente, qualquer efeito sobre os músculos
cachinadores  do marinheiro. Com as maçãs do rosto salientes, grande nariz
adunco, queixo fugidio, pesado maxilar inferior e grandes


- nota de  rodapé:
Publicado pela primeira vez no Southern Literary Messenger, setembro de 1835.
Título original: KING PEST THE FIRST. A TALE CONTAINING AN ALLEGORY.

olhos protuberantes e brancos, a expressão de sua fisionomia, embora 
repassada duma espécie de indiferença intratável por assuntos e coisas em geral,
nem por isso deixava de ser extremamente solene e séria, fora de qualquer
possibilidade de imitação ou descrição.  O marujo mais moço era, pelo menos
aparentemente, o inverso de seu companheiro. Sua estatura não ia além de um
metro e  vinte.  Um par de pernas atarracadas e arqueadas suportava-lhe o corpo
pesado e rechonchudo, enquanto os braços, descomunalmente curtos e grossos,
de punhos incomuns, pendiam balouçantes dos lados, como as barbatanas duma
tartaruga-marinha. Os olhos pequenos  de cor imprecisa, brilhavam-lhe
encravados fundamente nas órbitas.  O nariz se afundava na massa de carne, que
lhe envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso lábio superior descansava
sobre o inferior, ainda mais carnudo, com um ar de complacente satisfação
pessoal, mais acentuada pelo hábito que tinha o dono de  lamber seus beiços, de
vez em quando. E evidente que ele olhava  seu camarada alto com um sentimento
meio de espanto, meio de  zombaria, e, quando, às vezes, erguia a vista para
encará-lo, parecia  o vermelho sol poente a fitar os penhascos de Ben Nevis.
Várias e aventurosas haviam,  porém, sido as peregrinações do  digno par, pelas
diversas cervejarias da vizinhança, durante as primeiras horas da noite. Mas os
cabedais, por mais vastos que sejam não podem durar sempre e foi de bolsos
vazios que nossos amigos se aventuraram a entrar na taberna aludida.
No momento preciso, pois, em que esta estória começa, Legs e seu companheiro,
Hugh Tarpaulin(2), estão sentados, com os cotoveIos apoiados na grande mesa
de carvalho, em meio da sala e a  cara metida entre as mãos. Olhavam, por trás
duma enorme garrafa de humming-stuff a pagar, as agourentas palavras, Não se
fia, que para indignação e espanto deles, estavam escritas a giz na porta de 
entrada.(3) Não que o dom de decifrar caracteres escritos- dom  considerado
então, entre o povo, pouco menos cabalístico do que a arte de escrever -
pudesse, em estrita justiça, ter sido deixado a  cargo dos dois discípulos do mar;
mas havia, para falar a verdade, certa contorção no formato das letras, uma
indescritível guinada no conjunto, que pressagiava, na opinião dos dois
marinheiros uma  longa viagem de tempo ruim, e os decidia a, imediatamente na 
linguagem alegórica do próprio Legs, "correr às bombas, ferrar todas as velas e
correr com o vento em popa".
Tendo, conseqüentemente, consumido o que restava da cerveja e abotoado seus
curtos gibões, trataram afinal de saltar para a rua. Embora Tarpaulin houvesse,
por duas vezes, entrado de chaminé  adentro, pensando tratar-se da porta,
conseguiram por fim com êxito a escapada, e meia hora depois da meia-noite
achavam-se  nossos heróis prontos para outra e correndo a bom correr por uma
escura viela, na direção da Escada de Santo André, encarniçadamente
perseguidos pela taberneira do "Alegre Marinheiro".

- nota de  rodapé:
(2) Tarpaulin, lenço ou chapéu encerado, e também marinheiro. (N.T)
(3) O autor faz aqui um jogo de palavras intraduzível com a expressão No chalk,
que tanto quer dizer "não se fia" como "não há giz". (N.T.)

- fim da nota de rodapé.

Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da época desta dramática
estória, ressoava por toda a Inglaterra, e mais especialmente na metrópole, o
espantoso grito de: "Peste!" A cidade estava em grande parte despovoada, e
naqueles horríveis bairros das vizinhanças do Tâmisa, onde, entre aquelas vielas
e becos escuros, estreitos e imundos, O Demônio da Peste tinha, como se dizia,
seu berço, a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos
senhores, à vontade.

Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as pessoas proibidas,
sob pena de morte, de penetrar-lhes a lúgubre solidão. Contudo, nem o decreto
do monarca, nem as enormes barreiras erguidas às entradas das ruas, nem a
perspectiva daquela hedionda morte que, com quase absoluta certeza, se
apoderaria do desgraçado a quem nenhum perigo poderia deter de ali aventurar-
se, impediam que as habitações vazias e desmobiliadas fossem despojadas,
pelos rapinantes noturnos, de coisas como ferro, cobre ou chumbo, que
pudessem, de qualquer maneira, ser transformadas em lucro apreciável.
Verificava-se, sobretudo, por ocasião da abertura anual das barreiras, no inverno,
que fechaduras, ferrolhos e subterrâneos secretos não passavam de fraca
proteção para aqueles ricos depósitos de vinhos e licores que, dados os riscos e
incômodos da remoção, muitos dos numerosos comerciantes, com
estabelecimentos na vizinhança tinham consentido em confiar, durante o período
de exílio, a tão insuficiente segurança.

Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que atribuíam tais fatos á ação de
mãos humanas. Os espíritos, os duendes da peste, os demônios da febre eram,
para o povo, os autores das façanhas. E tamanhas estórias arrepiantes se
contavam a toda hora que toda a massa de  edifícios proibidos ficou, afinal, como
que envolta numa mortalha de horror e os próprios ladrões, muitas vezes, se
deixavam tomar de pavor que suas depredações haviam criado e abandonaram
todo o vasto recinto do bairro proibido, às trevas, ao silêncio, e à morte.
Foi uma daquelas terrificas barreiras já mencionadas e que indicavam estar o
bairro adiante sob a condenação da Peste que deteve, de repente a disparada em
que vinham, beco adentro, Legs e o digno Tarpaulin. Arrepiar caminho estava fora
de cogitação e não havia tempo a perder, pois os perseguidores se achavam
quase a seus calcanhares. Para marinheiros chapados era um brinquedo subir
por aquela tosca armação de madeira; exasperados pela dupla excitação do licor
e da corrida, pularam sem hesitar para dentro do recinto e, continuando sua
carreira de ébrios, com berros e urros, em breve  se perderam naquelas
profundezas intrincadas e pestilentas .

Não se achassem eles tão embriagados, a ponto de haverem perdido o senso
moral, o horror de sua situação lhes teria paralisado os passos vacilantes. O ar
era frio e nevoento. As pedras do calçamento, arrancadas do seu leito, jaziam em
absoluta desordem, em meio do capim alto e viçoso, que lhes subia em torno dos
pés e tornozelos.

Casas desmoronadas obstruíam as ruas. Os odores mais fétidos e mais deletérios
dominavam por toda a parte, e, graças àquela luz lívida que, mesmo à meia-noite,
nunca deixa de emanar duma atmosfera pestilência e brumosa, podiam-se
perceber, jacentes nos atalhos e becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas,
as carcaças de muitos saqueadores noturnos, detidos pela mão da peste, no 
momento mesmo da perpetração de seu roubo.
Mas não estava no poder de imagens, sensações ou obstáculos como esses
deter a corrida de homens que, naturalmente corajosos e, especialmente naquela
ocasião, repletos de coragem e de humming-stuff, teriam ziguezagueado, tão
eretos quanto lhes permitia  seu estado, sem temor, até mesmo dentro das fauces
da morte.  Na frente, sempre na frente, caminhava o disforme Legs, fazendo
aquele deserto solene soar e ressoar, com berros semelhantes aos terríveis urros
de guerra dos índios; e para a frente, sempre para a frente  rebolava o atarracado
Tarpaulin, agarrado ao gibão de seu companheiro mais ativo, levando-lhe enorme
vantagem nos tenazes esforços, à moda de música vocal, com seus mugidos
taurinos arrancados  das profundezas de seus pulmões estentóricos.
Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da peste. A cada passo, ou a
cada tropeção, o caminho que seguiam se tornava mais fedorento e mais horrível,
as veredas mais estreitas e mais intrincadas. Enormes pedras e vigas que caiam
de repente dos telhados desmoronados demonstravam, com sua queda soturna e
pesada,  a altura prodigiosa das casas circunvizinhas; e quando lhes era
necessário imediato esforço para forçar passagem através de freqüentes
montões de caliça, não era raro que a mão caísse sobre um esqueleto ou
pousasse num cadáver ainda com carne.

De repente, ao tropeçarem os marujos, à entrada dum elevado e  sinistro edifício,
um berro, mais retumbante que os outros, irrompeu da garganta do excitado Legs
e lá de dentro veio uma em rápida sucessão de ferozes e diabólicos guinchos,
semelhantes a risadas. Sem se intimidarem com aqueles sons que, pela sua
natureza, pela ocasião e pelo lugar, teriam gelado todo o sangue de corações
menos irrevogavelmente incendiados, o par de bêbados embarafustou pela porta,
escancarando-a e, cambaleantes, com um chorrilho de pragas, se viram em meio
dum montão de coisas.

A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro; mas um alçapão, a
um canto do soalho, perto da entrada, dava para uma longa fileira de adegas,
cujas profundezas, reveladas pelo ocasional rumor de garrafas que se partiam,
estavam bem sortidas do conteúdo apropriado. No meio da sala havia uma mesa,
em cujo centro  se erguia uma enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche.
Garrafas de vários vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pichéis e  garrafões
de todo formato e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em
torno desta via-se um grupo de seis indivíduos sentados em catafalcos. Vou
tentar descrevê-los um por um.

Em frente à porta de entrada e em plano acima dos companheiros estava sentado
um personagem que parecia ser o presidente da  mesa. Era descarnado e alto, e
Legs sentiu-se confuso ao notar
nele um aspecto mais emaciado do que o seu. Tinha o rosto açafroado, mas
nenhum de seus traços, exceção feita de um, era bastante característico para
merecer descrição especial. Aquele traço único consistia numa fronte tão insólita
e tão horrivelmente elevada que tinha a aparência de um boné ou coroa de carne
acrescentada  à cabeça natural. Sua boca, enrugada, encovava-se numa
expressão de afabilidade horrível, e seus olhos, bem como os olhos de todos 
quantos se achavam em torno à mesa, tinham aquele humor vítreo da
embriaguez. Esse cavalheiro trajava, da cabeça aos pés, mortalha de veludo de
seda negra, ricamente bordada, que lhe envolvia, com displicência, o corpo à
moda duma capa espanhola. Estava com a cabeça cheia de plumas negras
mortuárias, que ele fazia ondular para lá e para cá, com um ar afetado e
presunçoso e na  mão direita segurava um enorme fêmur humano, com o qual
parecia  ter acabado de bater em algum dos presentes para que cantasse.
Defronte dele, e de costas para a porta, estava uma mulher de  fisionomia não
menos extraordinária. Embora tão alta quanto o personagem que acabamos de
descrever, não tinha direito de se queixar  da mesma magreza anormal.
Encontrava-se, evidentemente, no derradeiro grau de uma hidropisia e seu todo
era bem semelhante ao  imenso pote de cerveja-de-outubro que se erguia, de
tampa arrombada, a seu lado, a um canto do aposento. Seu rosto era
excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma peculiaridade, ou antes
falta de peculiaridade, ligada à sua fisionomia, que já mencionei no caso do
presidente, isto é, somente uma feição de seu rosto era suficientemente
destacada para merecer caracterização especial. De fato, o perspicaz Tarpaulin
notou logo que a mesma  observação podia ser feita a respeito de um dos
indivíduos ali presentes. Cada um deles parecia monopolizar alguma porção
particular de fisionomia. Na dama em questão, essa parte era a boca. Começando
na orelha direita, rasgava-se, em aterrorizante fenda, até a  esquerda. Ela fazia, no
entanto, todos os esforços para conservar  a boca fechada, com ar de dignidade.
Seu traje consistia num sudário, recentemente engomado e passado a ferro,
chegando-lhe até o  queixo, com uma gola encrespada de musselina de cambraia.
À sua direita sentava-se uma mocinha chocha, a quem ela parecia amadrinhar.
Essa delicada criaturinha deixava ver, pelo tremor  de seus dedos descarnados,
pela lívida cor de seus lábios e pela leve mancha héctica que lhe tingia a tez, aliás
cor de chumbo, sintomas  de tuberculose galopante. Um ar de extrema distinção,
porém, dominava em toda a sua aparência. Usava, duma maneira graciosa e
negligente, uma larga e bela mortalha da mais fina cambria, indiana. Seu cabelo
caía-lhe em cachos sobre o pescoço. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios, mas
seu nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso, flexível e cheio de
borbulhas, acavalava por demais sobre o lábio inferior; e, a despeito da delicada
maneira  pela qual ela, de vez em quando, e movia para um lado e outro com a
língua, dava-lhe à fisionomia uma expressão um tanto quanto  equívoca.

Do outro lado, e à esquerda da dama hidrópica, estava sentado um velho
pequeno, inchado, asmático e gotoso, cujas bochechas lhe repousavam sobre os
ombros como dois imensos odres de vinho do Porto. De braços cruzados e uma
perna enfaixada posta sobre a mesa, parecia  achar-se com direito a alguma
consideração. Evidentemente orgulhava-se bastante de cada polegada de sua
aparência pessoal, mas sentia mais especial deleite em chamar a atenção para
seu sobretudo de cores vistosas. Para falar a verdade, não deveria este ter
custado pouco dinheiro e lhe assentava esplendidamente bem, talhado como
estava em uma dessas cobertas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes
àqueles gloriosos escudos que, na Inglaterra e noutros lugares, são
ordinariamente suspensos, em algum lugar patente, nas residências de
aristocratas falecidos.
Junto dele, e à direita do presidente, via-se um cavalheiro, com compridas  meias
brancas e ceroulas de algodão. Seu corpo tremelicava de maneira ridícula, num
acesso daquilo que Tarpaulin chamava "os terrores". Seus queixos,
recentemente barbeados, estavam estreitamente atados por uma faixa de
musselina, e, tendo os braços amarrados nos pulsos da mesma maneira, não lhe
era possível servir-se muito à vontade, dos licores que se achavam sobre a mesa,
precaução necessária, na opinião de Legs, graças à expressão
caracteristicamente idiota e temulenta de seu rosto. Sem embargo, um par de 
prodigiosas orelhas, que sem dúvida era impossível ocultar, alteava-se  na
atmosfera do aposento e, de vez em quando, arrebitavam-se espasmodicamente
ao rumor das rolhas que espoucavam. Defronte  dele, sentava-se o sexto e último
personagem, de aparência rígida que, sofrendo de paralisia, devia sentir-se,
falando sério, muito  mal à vontade nos seus trajes nada cômodos. Essa roupa
um tanto singular, consistia em um novo e belo ataúde de mogno.  Sua tampa ou
capacete apertava-se sobre o crânio do sujeito e estendia-se sobre ele, à moda de
um elmo, dando-lhe a todo o rosto  um ar de indescritível interesse. Cavas para os
braços tinham sido cortadas dos lados, mais por conveniência que por elegância;
apesar disso, o traje impedia seu proprietário de se sentar direito como seus
companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a um cavalete,
formando um ângulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes olhos
esbugalhados revirava suas apavorantes escleróticas para o teto, num absoluto
espanto de sua própria enormidade.
Diante de cada um dos presentes estava a metade dum crânio, usada como copo.
Por cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma corda amarrada numa
das pernas e presa a uma argola no forro. A outra perna, sem nenhuma amarra,
saltava do corpo em angulo reto, fazendo flutuar e girar toda a carcaça
desconjuntada e chocolhante, ao sabor de qualquer sopro de vento que
penetrasse no aposento.  O crânio daquela  hedionda coisa continha certa quantidade
 de carvão em brasa, que lançava uma luz vacilante, mas viva, sobre a cena,
enquanto ataúdes e outras mercadorias de casa mortuária empilhavam-se até o
alto, em toda a sala e contra as janelas, impedindo assim que qualquer raio de luz
se projetasse na rua.

À vista de tão extraordinária assembléia e de seus mais extraordinários adornos,
nossos dois marujos não se conduziram com aquele  grau de decoro que era de
esperar. Legs, encostando-se à parede junto da qual se encontrava, deixou cair o
queixo ainda mais baixo do que de costume e arregalou os olhos até mais não
poder, quanto Hugh Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao nível
da mesa e dando palmadas nas coxas, explodiu numa desenfreada e
extemporânea gargalhada, que mais parecia um rugido longo, poderoso e
atroador.
Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento tão excessivamente
grosseiro, o escanifrado presidente sorriu com toda a graça para os intrusos,
fazendo-lhes um gesto cheio de dignidade com a cabeça empenachada de negro,
e, levantando-se, pegou os pelos braços e levou-os aos assentos que alguns dos
outros, presentes tinham colocado, enquanto isso, para que eles estivessem a co-
modo. Legs nenhuma resistência ofereceu a tudo isso sentando-se no lugar
indicado, ao passo que o galanteador Hugh removendo cavalete de ataúde do
lugar perto da cabeceira da mesa para junto da mocinha tuberculosa, da mortalha
ondulante derreou-se a seu lado, com grande júbilo, e, emborcando um crânio de
vinho vermelho, esvaziou-o em honra de suas mais íntimas relações. Diante  de
tamanha presunção, o cavalheiro teso do ataúde mostrou-se excessivamente
exasperado, e sérias consequências poderiam ter-se seguido não houvesse o
presidente, batendo com o bastão na mesa, distraído a atenção de todos os
presentes para o seguinte discurso:
- É nosso dever nosso na atual feliz ocasião.
- Pare com isso! - interrompeu Legs, com toda a seriedade.  Cale essa boca, digo-
lhe eu, e diga-nos que diabos são  vocês todos e que estão fazendo aqui, com
essas farpelas de diabos sujos  e bebendo a boa pinga armazenada para o
inverno pelo meu honrado  camarada Will Wimble, o cangalheiro!
À vista daquela imperdoável amostra de má educação, toda a esquipática
assembléia se soergueu e emitiu aqueles mesmos rápidos e sucessivos guinchos
ferozes e diabólicos que já haviam chamado antes a atenção dos marinheiros. O
presidente, porém, foi primeiro a retomar sua compostura e por fim, voltando-se
para Legs com grande dignidade, recomeçou:
- De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade razoável da parte de
hóspedes tão ilustres, embora não convidados. Ficai, pois, sabendo que, nestes
domínios, sou o monarca e governo, com indivisa autoridade, com o título de "Rei
Peste I.
Esta sala, que supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro  Will Wimble,
homem que não conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara, até esta
noite, aos nossos reais ouvidos… esta sala, repito, é a Sala do Trono de nosso
palácio. Consagrada  aos conselhos de nosso reino e outros destinos de
natureza sagrada e superior.
A nobre dama sentada à nossa frente é a Rainha Peste, nossa Sereníssima
Esposa. Os outros personagens ilustres que vedes pertencem todos à nossa
família e usam as insígnias do sangue real nos respectivos
títulos de: "Sua Graça o Arquiduque Peste-Ifero", "Sua Graça o Duque Pest-
Ilencial", "Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso" e "Sua Serena Alteza a
Arquiduquesa Ana-Peste"(4).

Quanto à vossa pergunta - continuou ele -, a respeito do que nos tras aqui
reunidos em conselho, ser-nos-ia lícito responder que, concerne e concerne
exclusívamente, ao nosso próprio e particular interesse e não tem importância
para ninguém mais que não nós  mesmos. Mas em consideração aos direitos de
que, na qualidade de hospedes e estrangeiros, possais julgar-vos merecedores,
explicar-vos-emos entanto, que estamos aqui, esta noite, preparados por intensa
pesquisa e acurada investigação, a examinar, analisar e determinar,
indubitavelmente, o indefinível espírito, as incompreensíveis qualidades e
natureza desses inestimáveis tesouros do paladar que são os vinhos, cervejas e
licores desta formosa metrópole. Assim   procedemos não só para melhorar
nossa própria situação, mas para o bem-estar verdadeiro daquela soberana
sobrenatural que  reina sobre todos nós, cujos domínios não têm limites e cujo
nome é "Morte".

- Cujo nome é Davi Jones! - exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um
crânio de licor e emborcando ele próprio um segundo .

- Lacaio profanador! - exclamou o presidente, voltando agora para o digno Hugh. -
Miserável e execrando profanador.  Dissemos que, em consideração àqueles
direitos que, mesmo na tua imunda pessoa, não nos sentimos com inclinação
para violar, condescendemos em responder às tuas grosseiras e desarazoadas 
indagações. Contudo, tendo em vista a vossa profana intrusão no recinto de
nossos conselhos, acreditamos ser de nosso dever multar-te a ti e a teu
companheiro, num galão de Black Strap,(5)   que bebereis pela prosperidade de
nosso reino, dum só gole e de joelhos; logo depois estareis livres para continuar
vosso caminho ou permanecerdes e serdes admitidos aos privilégios de nossa
mesa, se acordo com vossos respectivos gostos pessoais.
- Será coisa de absoluta impossibilidade - replicou Legs, a quem a imponência e a
dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente  inspirado alguns sentimentos de
respeito, e que se levantara, ficando de pé junto da mesa, enquanto aquele falava.
- Será, com licença de Vossa Majestade, coisa extremamente impossível arruno
no meu porão até mesmo a quarta parte desse tal licor que vossa Majestade
acaba de mencionar. Não falando das mercadorias colocadas esta manhã a bordo
para servir de lastro, e não mencionando as várias cervejas e licores embarcados
esta noite em vários portos, tenho, presentemente, uma carga completa de
humming-tuff, entrada e devidamente paga na taberna do "Alegre Marinheiro".

- nota de rodapé:
(4) Poe emprega aqui um trocadilho, pois em inglês anapest significa assim, numa
palavra, "anapesto", que é, como bem se sabe, pé de verso, grego ou latim, 
composto de três sílabas: as duas primeiras breves, e a terceira longa (N.T)
(5) Mistura de melado e cachaça. (N. T.)
- fim da nota de rodapé.

De modo que há de Vossa Majestade ter a bondade de tomar  a  tenção como
coisa realizada, pois não posso de modo algum, nem  quero, engolir outro trago e
muito menos um trago dessa repugnante  água-de-porão que responde ao nome
de Black Strap.
- Pare com isso! - interrompeu Tarpaulin, espantado não só  pelo tamanho do
discurso de seu companheiro como pela natureza de sua recusa. - Pare com isso,
seu marinheiro de água doce! Repito, Legs, pare com esse palavreado! O meu
casco está ainda leve, embora, confesse-o, esteja o seu mais pesado em cima que
em baixo. Quanto à estória de sua parte da carga, em vez de provocar uma
borrasca, acharei jeito de arrumá-la eu mesmo no porão, mas…
- Este modo de proceder - interferiu o presidente - não está de modo algum em
acordo com os termos da multa ou sentença que é de natureza média e não pode
ser alterada nem apelada. As  condições que impusemos devem ser cumpridas à
risca, e isto sem um instante de hesitação. . sem o quê, decretamos que sejais
amarrados, pescoços e calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes,
naquela pipa de cerveja-de-outubro!
- Que sentença! Que sentença! Que sentença justa e direita! decreto glorioso! A
condenação mais digna, mais irrepreensível, sagrada! - gritaram todos os
membros da família Peste ao mesmo tempo.
O rei franziu a testa em rugas inumeráveis; o homenzinho gotoso soprava, como
um par de foles; a dona da mortalha de cambraia movia o nariz para um lado para
o outro; o cavalheiro de ceroulas  de algodão arrebitou as orelhas; a mulher do
sudário ofegava como  um peixe agonizante, e o sujeito do ataúde entesou-se
mais, arregalando os olhos para cima.
- Oh, uh, uh! - ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a excitação geral. - Uh, uh, ...
Uh, uh, uh. . . Estava eu dizendo quando aqui o Sr. Rei Peste veio meter seu
bedelho, que a respeito da questão de dois ou três galões mais ou menos de
Black Strao era uma bagatela para um barco sólido como eu que não está
sobrecarregado; e quando se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus  lhe
perdoe) e de me pôr de joelhos diante dessa horrenda majestade aqui presente,
que eu conheço tão bem como sei que sou um pecador, e que não é outro senão
Tim Hurlygurly, o palhaço!… Ora essa, é muito outra coisa, e vai muito além de
minha compreensão.
Não lhe permitiram que terminasse tranquilamente seu discurso ao nome de Tim
Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.
- Traição! - gritou Sua Majestade o Rei Peste I.
- Traição! - disse o homenzinho gotoso.
- Traição! - esganiçou a Arquiduquesa Ana-Peste.
- Traição! - murmurou o homem dos queixos amarrados.
- Traição! - grunhiu o sujeito do ataúde.
- Traição, traição! - berrou Sua Majestade, a mulher da bocarra. E, agarrando o
infeliz Tarpaulin pela traseira das calça, o

qual estava justamente enchendo outro crânio de licor, ergueu-o no ar e deixou-o bem
alto no ar, e deixou-ocair sem cerimônia no imenso barril aberto de sua cerveja
predileta. Boiando para lá e para cá, durante alguns segundos, como uma maçã numa
tigela de ponche, desapareceu afinal no turbilhão de espuma que, no já efervescente
licor, haviam   provocado seus esforços de safar-se.
Não se resignou, porém, o marinheiro alto com a derrota de seu camarada.
Empurrando o Rei Peste para dentro do alçapão aberto, Legs deixou cair a tampa do
alçapão sobre ele, com uma praga, e correu para o meio da sala. Ali, puxando para
baixo o esqueleto que pendia sobre a mesa, com tamanha força e vontade que o fez
que conseguiu fazer saltar os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que  morriam os
derradeiros lampejos de luz dentro da sala.
Preciptando-se, então, com toda a sua energia, contra a pipa fatal cheia de cerveja-de-
outubro e de Hugh Tarpaulin, revirou-a, num instante, de lado. Dela jorrou um dilúvio de
licor tão impetuoso, violento, tãoo irresistível, que a sala ficou inundada de parede  a
parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os  cavaletes rebolaram uns
por cima dos outros, a tina de ponche foi  lançada na chaminé da lareira.. . e as damas
caíram com ataques histéricos. Montes de artigos fúnebres boiavam. Jarros, pichéis e
garrafões  confundiam-se, numa misturada enorme, e as garrafas de vime embatiam-
se, desesperadamente, com cantis trançados. O homem dos tremeliques afogou-se
imediatamente. O sujeito flutuava no seu caixão... e o vitorioso Legs, agarrando pela
cintura pela  criatura a mulher gorda do sudário, arrastou-a para a rua e em linha reta, a
direção do Free and Easy, seguido, a bom pano, pelo  temível Hugh Tarpaulin, que,
tendo espirrado tres ou quatro vezes, ofegava e bufava atrás dele, puxando a
Arquiduquesa Ana-Peste.

Nenhum comentário: