sábado, 15 de maio de 2010

METZENGERSTEIN


METZENGERSTEIN (1)

Pestis eram vivus - moriens tua mors ero.(2)
MARTINHO LUTERO

O horror e a fatalidade têm tido livre curso em todos os tempos.
Porque então datar esta estória que vou contar? Basta dizer que, no período de
que falo, havia, no interior da Hungria, uma crença bem assentada, embora oculta,
nas doutrinas da metempsicose. Das próprias duoutrinas, isto é, de sua falsidade,
ou de sua probabilidade,nada direi. Afirmo, porém, que muito de nossa
incredulidade


- nota de rodapé:
1. Publicado  primeira vez no Saturday Courier, 14 de janeiro de 1832.
METZENGERSTEIN.
2. Vivendo era teu açoite - morto, serei tua morte. (N. T.)

(como diz La Bruyère, explicando todas as nossas infelicidades)  vient de ne
pouvoir être seul (3).
Mas havia na superstição húngara alguns pontos que tendiam fortemente para o
absurdo. Diferiam os húngaros, bastante essencialmente, de suas autoridades do
Oriente. Por exemplo: a alma,  dizem eles -  cito as palavras dum sutil e inteligente
parisiense -  ne demeure qu'une seule fois dans un corps sensible: au reste  un
cheval, un chien, un homme même, n'est que la ressemblanc peu  tangible  de ces
animaux.(4)
As famílias de Berlifitzing e Metzengerstein viviam há séculos em discórdia.
Jamais houvera antes duas casas tão ilustres acirradas mutuamente por uma
hostilidade tão mortal. Parece encontrar-se a origem desta inimizade nas palavras
duma antiga profecia : "Um nome elevado sofrerá queda mortal quando, como o
cavaleiro sobre seu cavalo, a mortalidade de Metzengerstein triunfar da
imortalidade de Berlifitzing."

Decerto as próprias palavras tinham pouca ou nenhuma significação. Mas as
causas mais triviais têm dado origem - e isso sem remontar a muito longe - a
consequências igualmente cheias de acontecimentos. Além disso, as duas casas,
aliás vizinhas, vinham  de muito exercendo influência rival nos negócios de um
governo movimentado. É coisa sabida que vizinhos próximos raramente são 
amigos e os habitantes do castelo de Berlifitzing podiam, de seus altos
contrafortes, mergulhar a vista nas janelas do palácio de Metzengerstein. Afinal,
essa exibição duma magnificência mais que feudal era pouco propícia a acalmar
os sentimentos irritáveis Berlifitzings, menos antigos e menos ricos. Não há, pois,
motivo de espanto para o fato de haverem as palavras daquela predição , por 
mais disparatadas que parecessem, conseguido criar e manter a discórdia entre
duas famílias já predispostas a querelar, graças às instigações da inveja
hereditária. A profecia parecia implicar - se é que implicava alguma coisa - um
triunfo final da parte da casa mais poderosa já, e era sem dúvida relembrada, com
a mais  amarga animosidade, pela mais fraca e de menor influência.
O Conde Guilherme de Berlifitzing, embora de elevada linhagem era, ao tempo
desta estória, um velho enfermo e caduco, sem nada de notável a não ser uma
antipatia pessoal desordenada e inveterada pela família de seu rival e uma paixão
tão louca por cavalos  e pela caça que nem a enfermidade corporal nem a idade
avançada nem a incapacidade mental impediam sua participação diária  nos
perigos das caçadas.

- nota de rodapé:
(3) "Provém de não podermos estar sozinhos." Mercier, em L'an deux mille quatre
cents quarante (O Ano 2440), defende seriamente as doutrinas  da metempsicose,
e J. D'Israeli diz que "não há sistema tão simples e que menos repugne a
inteligencia". O Coronel Ethan Alteo, o Green Mountain Boy (O Garoto da
Montanha Verde), foi também, segundo dizem, um sério e importante
metempsicosista.
(4) Só uma vez permanece num corpo sensivel quanto ao resto, um cavalo,  um
homem mesmo, não são senão a semelhança pouco tangível desses animais.
(N. T.)

O Barão Frederico de Metzengerstein, por outro lado, ainda não atingira a  maior
idade. Seu pai, o Ministro G***, morrera moço. Sua mãe, Dona Maria, logo
acompanhara o marido. Frederico estava, naquela época, com dezoito anos de
idade. Numa cidade, dezoito anos não constituem um longo período; mas num
lugar solitário, numa solidão tão magnificente como a daquela velha casa senhorial, 
o pêndulo vibra com significação mais profunda.
Em virtude de certas circunstâncias características decorrentes da administração
de seu pai, o jovem barão, por morte daquele, entrou imediatamente na posse de
vastas propriedades. Raramente se vira antes, um nobre húngaro senhor de
tamanhos bens. Seus castelos eram incontáveis. O principal, pelo esplendor e
pela vastidão era o palácio de Metzengerstein. Os limites de seus domínios jamais
foram claramente delineados, mas seu parque principal abrangia uma área de
cinquenta milhas.
O acontecimento da entrada de posse de uma fortuna tão incomparável por um
proprietário tão jovem e de caráter tão bem conhecido poucas conjeturas trouxe à
tona referente ao curso provável  de sua conduta. E de fato, no espaço de três
dias, a conduta do herdeiro  sobrepujou a do próprio Herodes e ultrapassou, de
longe,  as expectativas de  seus admiradores  mais entusiastas. Orgias
vergonhosas,  flagrantes perfídias, atrocidades inauditas deram logo a
compreender a seus apavorados vassalos que nenhuma submissão servil de sua
parte e nenhum escrúpulo de consciência da parte dele  lhe poderia de ora em
diante garantir a segurança contra as implacáveis garras  daquele  mesquinho
Calígula. Na noite do quarto dia, pegaram fogo as estribarias do castelo de
Berlifitzing e a opinião unânime da vizinhança acrescentou mais este crime à já
horrenda lista dos delitos e atrocidades do barão.
Mas, durante o tumulto  ocasionado por este fato , o jovem senhor estava
sentado  - aparentemente mergulhado em funda meditação - num vasto e solitário
aposento superior do palácio senhorial dos Metzengerstein. As ricas, embora
desbotadas, colgaduras que balançavam lugubremente nas paredes
representavam as figuras sombrias e majestosas de milhares de antepassados
ilustres. Aqui, padres ricamente arminhados e dignitários pontificais,
familiarmente  sentados com o soberano, opunham os seu veto aos desejos de
um rei temporal ou reprimiam com o fiat da supremacia papal o centro rebelde do
Grande-Inimigo. Ali, os negros e altos vultos dos príncipes de Metzengerstein -
os musculosos corcéis de guerra pisoteando os cadáveres dos inimigos
tombados - abalavam os nervos mais firmes, com sua vigorosa expressão; e aqui,
ainda, voluptuosos e brancos como cisnes, flutuavam os vultos das damas de
outrora,  nos volteios duma dança irreal, aos acentos duma melodia  imaginária.
Mas, enquanto o barão escutava ou fingia escutar a algazarra sempre crescente
que se erguia das cavalariças de Berlifitzing - ou talvez meditasse em algum ato
de audácia, mais novo e mais decidido -, seus olhos se voltaram 
involuntariamente para a figura dum enorme cavalo, dum colorido fora do comum, representado  na tapeçaria
como pertencente a um antepassado sarraceno da família de seu rival. O cavalo
se mantinha, no primeiro plano do desenho, sem movimento, como uma estátua,
enquanto que, mais para trás, seu cavaleiro derrotado perecia sob o punhal dum
Metzengerstein.
Abriu-se nos lábios de Frederico uma expressão diabólica, ao  perceber a direção
que seu olhar tinha tomado, sem que ele o houvesse notado. Contudo não
desviou a vista. Pelo contrário podia de forma alguma explicar a acabrunhante
ansiedade que parecia apoderar-se, como uma mortalha, de seus sentidos. Era
com dificuldade que conciliava suas sensações imaginárias e incoerentes  com a
certeza de estar acordado. Quanto mais olhava, mais absorvente se tornava o
feitiço, mais impossível lhe parecia poder a arrancar seu olhar do fascínio daquela
tapeçaria. Mas a algazarra de fora se tornou de repente mais violenta e, com um
esforço constrangedor, desviou sua atenção para o clarão de luz vermelha
lançado em cheio sobre as janelas do aposento pelas cavalariças chamejantes.
A ação, porém, foi apenas momentânea; seu olhar se voltou quinalmente para a
parede. Com extremo espanto e horror, verificou que a cabeça do gigantesco
corcel havia, entrementes, mudado  de posição. O pescoço do animal antes
arqueado, como que de compaixão, sobre o corpo prostrado de seu dono Esten
agora, plenamente, na direção do barão. Os olhos, antes invisíveis  tinham agora
uma expressão enérgica e humana, e cintilavam com um vermelho ardente e
extraordinário; e os beiços distendido cavalo, que parecia enraivecido, exibiam
por completo seus de sepulcrais e repugnantes.
Estupefato de terror, o jovem senhor dirigiu-se, cambaleante, para a. Ao
escancará-la, um jato de luz vermelha, invadindo ate o fundo do aposento, lançou
a sombra dele em nítido recorte  de encontro à tapeçaria tremulante. Ele
estremeceu, ao perceber que a sombra - enquanto se detinha vacilante no umbral
tomava exata posição e preenchia, precisamente, o contorno do implacável e  
triunfante matador do sarraceno Berlifitzing.
Para aliviar a depressão de seu espírito, o barão correu para o  ar livre. No portão
principal do palácio encontrou três eguariços.  Com muita dificuldade, e com
imenso perigo de suas vidas, continham eles os saltos convulsivos dum cavalo
gigantesco e de cor avermelhada.
- De quem é esse cavalo? Onde o encontraram? -          perguntou o      jovem, num tom
lamentoso e rouco, ao verificar, instantâneamente, que o misterioso corcel do
quarto tapeçado era a reprodução do furioso animal que tinha diante dos olhos.
- Ele vos pertence, senhor - respondeu um dos eguariços ou pelo menos não foi
reclamado por nenhum outro proprietário.  Nós o pegamos quando fugia, todo
fumegante e escumando raiva, das cavalariças incendiadas do castelo de
Berlifitzing. Supondo que pertencesse à manada de cavalos estrangeiros do velho conde,
levamo-lo para trás, como se fosse um dos remanescentes da estribaria. Mas os
empregados ali negam qualquer direito ao animal, o que é estranho, uma vez que
ele traz marcas evidentes de ter escapado dificilmente dentre as chamas.
-As letras "W. V. B." estão também distintamente marcadas na sua testa -
interrompeu um segundo eguariço. - Supunha, portanto que eram as iniciais de
Wilhelm von Berlifitzing, mas todos no castelo negam peremptoriamente
conhecer o cavalo.

- É  extremamente singular! - disse o jovem barão, com um ar pensativo e
parecendo inconsciente do significado de suas palavras              - É, como dizem vocês,
um cavalo notável, um cavalo prodigioso…embora, como vocês muito bem
observaram, de caráter, arisco e intratável.. . Pois que me fique pertencendo -
acrescentou ele depois duma pausa. - Talvez um cavaleiro como Frederico
Metzenterstein possa domar até mesmo o diabo das cavalariças de Berlifitzing.
- Estais enganado, senhor. O cavalo, como já dissemos, creio eu, não pertence às
cavalariças do conde. Se tal se desse, conhecemos demasiado nosso dever para
trazê-lo à presença duma nobre pessoa de vossa família.

- É  verdade! - observou o barão, secamente.
Nesse  momento, um jovem camareiro veio a correr, afogueado, do palácio.
Sussurrou ao ouvido de seu senhor a estória do súbito desaparecimento de
pequena parte da tapeçaria, num aposento que ele designou, entrando, ao mesmo
tempo, em pormenores de caráter minucioso e circunstanciado. Mas como tudo
isto foi transmitido em tom de voz bastante baixo, nada transpirou que satisfizesse
a excitada curiosidade dos eguariços.
O jovem Frederico, enquanto ouvia, mostrava-se agitado por emoções variadas.
Em breve, porém, recuperou a compostura e uma expressão de resoluta maldade
espalhou-se-lhe na fisionomia ao dar expressas ordens para que o aposento em
questão fosse imediatamente fechado e a chave trazida às suas mãos.
Soubeste, senhor, da lamentável morte do velho caçador Berlifitzing - perguntou
um de seus vassalos ao barão, enquanto, após a partida do camareiro, o enorme
corcel, que o gentil-homem adotara como seu, saltava e corveteava, com
redobrada fúria, pela longa avenida que se estendia desde o palácio até as
cavalariças de Metzengerstein.

- Não! - disse o barão, voltando-se abruptamente para quem lhe falava- Morreu,
disse você?
- É a pura verdade, senhor, e suponho que para um nobre com o vosso nome não
será uma notícia desagradável.
Rápido sorriso abriu-se no rosto do barão.
- Como morreu ele?
-  Nos seus esforços imprudentes para salvar a parte favorita de seus animais de
caça, pereceu miseravelmente nas chamas.

- De... ve...e...e... ras!    exclamou o barão, como que impressionado, lenta e
deliberadamente, pela verdade de alguma  idéia excitante.
- Deveras   -  repetiu o vassalo.
- Horrível - disse o jovem, com calma, e voltou sossegamente ao palácio.
Desde essa data, sensível alteração se operou na conduta exterior do jovem e
dissoluto Barão Frederico de Metzengerstein. Na verdade, seu procedimento
desapontava todas as expectativas e se  mostrava pouco em acordo com as
vistas de muita mamãe  de filha casadoura, ao passo que seus hábitos e
maneiras, ainda menos do que dantes, não ofereciam algo de congenital com os
da aristocracia  da vizinhança. Nunca era visto além dos limites de seu próprio
domínio e, no vasto mundo social, andava absolutamente sem companheiros, a
não ser, na verdade, aquele cavalo descomunal, impetuoso e fortemente colorido,
que ele de contínuo cavalgava a partir dessa época, tivesse qualquer misterioso
direito ao titulo de seu amigo.
Numerosos convites, da parte dos vizinhos, chegaram, durante muito tempo:
"Quererá o barão honrar nossas festas com sua presença?" "Quererá o barão se
juntar a nós para caçar javali?
- "Metzengerstein não caça" ou "Metzengerstein não comparecerá" eram as
respostas lacônicas e arrogantes.
Estes repetidos insultos não podiam ser suportados por uma nobreza imperiosa.
Tais convites tornaram-se menos cordiais, menos freqüentes, até que cessaram
por completo. A viúva do Conde de Berlifitzing exprimiu mesmo, como se diz ter-
se ouvido,  a esperança de "que o barão estivesse em casa, quando não desejava
estar em casa, desde que desdenhava a companhia de seus iguais e que andasse
a cavalo, quando não queria andar a cavalo, uma vez que preferia a companhia de
um cavalo". Isto decerto era estúpida explosão da hereditária má-vontade e
provava, tão-só, quanto se tornam nossas palavras singularmente absurdas
quando desejamos dar-lhes forma enérgica fora do comum.
As pessoas caridosas, no entanto, atribuíam a alteração de procedimento do
jovem fidalgo à tristeza natural de um filho pela precoce perda de seus pais,
esquecidas, porém, de sua conduta atroz e dissipada durante o curto período que
se seguiu logo àquela  perda. Alguns havia, de fato, que a atribuíam a uma idéia
demasiado exagerada de sua própria importância e dignidade. Outros  ainda
(entre os quais pode ser mencionado o médico da família - não hesitavam em falar
numa melancolia mórbida e num mal ditário, enquanto tenebrosas insinuações de
natureza mais   equivocas corriam entre o povo.
Na verdade, o apego depravado do barão à sua montaria recentemente adquirida -
apego que parecia alcançar novas forças a  cada novo exemplo das inclinações
ferozes e demoníacas do animal - tornou-se, por fim, aos olhos de todos os
homens de bom-senso um fervor nojento e contra a natureza. No esplendor do
meio-dia, a horas mortas da noite, doente ou com saúde, na calma ou na tempestade, o
jovem Metzengerstein parecia parafusado à sela daquele cavalo colossal, cujas
ousadias intratáveis tão bem se adequavam ao próprio espírito do dono.
Havia, além disso, circunstâncias que, ligadas aos recentes acontecimentos,
davam um caráter sobrenatural e monstruoso à mania do cavaleiro e às
capacidades do corcel. O espaço que ele transpunha em um  simples salto fora
cuidadosamente medido e verificou-se que excedia, por uma diferença espantosa,
as mais ousadas expectativas  das mais imaginosas criaturas. Além disso, o
barão não tinha um nome particular para o animal, embora todos os outros de
suas cavalariças fossem diferençados por denominações características. Sua
estrebaria também ficava a certa distância dos restantes, e, quanto ao trato e
outros serviços necessários, ninguém a não ser o dono em pessoa, se havia
aventurado a fazê-los ou mesmo a entrar no recinto da baia particular daquele
cavalo.
Observou-se também que, embora os três estribeiros que haviam capturado o
corcel quando este fugia do incêndio em Berlifitzing houvesse conseguido deter-
lhe a carreira por meio dum laço corrediço, nenhum  dos três podia afirmar com
certeza que tivesse, no correr daquela perigosa luta, ou em outro qualquer tempo
depois, posto a mão sobre o corpo do animal. Provas de inteligência
característica na conduta dum nobre cavalo árdego não bastariam, decerto para
excitar uma atenção desarrazoada, mas havia certas circunstâncias que
violentavam os espíritos mais cépticos e mais fleumáticos.
E dizia-se que, por vezes, o animal obrigava a multidão curiosa que o cercava a
recuar de horror diante da profunda e impressionante expressão de seu
temperamento terrível e que, outras vezes o jovem Metzengerstein empalidecera e
fugira diante da súbita e inquisitiva expressão de seu olhar quase humano.
Entre toda a domesticidade do barão ninguém havia, porém, que duvidasse do
ardor daquela extraordinária afeição que existia da parte do jovem fidalgo pelas
ferozes qualidades de seu cavalo; ninguém, exceto um insignificante e disforme
pajenzinho, cujos aleijões estavam sempre à mostra de todos e cujas opiniões
não tinham a mínima importância possível. Ele (se é que suas idéias são dignas
afinal de menção) tinha o desplante de afirmar que seu senhor jamais montava na
sela sem um estremecimento inexplicável e quase imperceptível, e que ao voltar
de cada um de seus demorados e habituais  passeios uma expressão de
triunfante malignidade retorcia todos  os músculos de sua fisionomia.
Numa noite tempestuosa, Metzengerstein, despertando dum sono pesado
desceu, como um maníaco, de seu quarto e, montando a cavalo, a toda a pressa
lançou-se a galope para o labirinto da floresta. Uma ocorrência tão comum não
atraiu particular atenção, mas seu regresso foi esperado com intensa ansiedade
pelos seus criados quando, após algumas horas de ausência, as estupendas e
magnificas seteiras do palácio de Metzengerstein se puseram a estalar e
a tremer até às bases, sob a ação duma densa e livida massa , de fogo
indomável.
Como as chamas, quando foram vistas pela primeira vez já tivessem feito tão
terríveis progressos que todos os esforços para salvar qualquer parte do edifício
eram evidentemente inúteis, toda a vizinhança atônita permanecia ociosa e
calada, senão apática. Mas outra coisa inesperada e terrível logo prendeu da turba
e demonstrou quão muito mais intensa é a excitação provocada nos sentimentos 
duma duma multidão pelo espetáculo da agonia  humana do que suscitada pelas
mais aterradoras cenas da matéria inanimada.

Ao longo da comprida avenida de anosos carvalhos que levava da floresta até a
entrada principal do palácio de Metzengerstein um corcel, conduzindo um
cavaleiro sem chapéu e em desordem era visto a pular com uma impetuosidade
que ultrapassava a do próprio Demônio da Tempestade.
Era evidente que o cavaleiro não conseguia mais dominar a carreira do animal. A
angústia de sua fisionomia, os movimentos  convulsivos de toda a sua pessoa
mostravam o esforço sobre-humano  no que fazia; mas som algum, a não ser um
grito isolado, escapava de seus lábios lacerados, que ele mordia cada vez mais,
no paradoxismo do terror. Num instante, o tropel dos cascos ressoou forte e
áspero acima do bramido das labaredas e dos assobios do vento, um instante
ainda e, transpondo dum só salto o portão e o fosso o corcel lançou-se pelas
escadarias oscilantes do palácio e, como o cavaleiro, desapareceu no turbilhão
caótico do fogo.

A fúria da tempestade imediatamente amainou e uma calma de morte
sombriamente se seguiu. Uma labareda pálida ainda envolveu o edifício como
uma mortalha, e, elevando-se na atmosfera tranqüila, dardejava um clarão de luz
sobrenatural, enquanto uma nuvem de fumaça se abatia pesadamente sobre as
ameias com a forma bem nítida dum gigantesco cavalo.

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