sábado, 15 de maio de 2010

MORELA

MORELA (1)

Ele mesmo, por si mesmo unicamente, eternamente Um e único
PLATÃO: Symposf


ERA COM SENTIMENTOS de profunda embora singularíssima afeição  que eu
encarava minha amiga MoreIa. Levado a conhecê-la por acaso, há muitos anos,
minha alma, desde nosso primeiro encontro  ardeu em chamas que nunca antes
conhecera; não eram, porém  as chamas de Eros, e foi amarga e atormentadora
para meu espírito  a convicção crescente de que eu não podia, de modo algum, de
sua incomum significação, ou regular-lhe a vaga intensidade. Conhecem-nos,
porém, e o destino conduziu-nos juntos ao altar; mas nunca falei de paixão ou
pensei em amor. Ela, contudo, evitava companhias e, ligando-se só a mim, fazia-
me feliz. Maravilhar-se é  uma felicidade; e é uma felicidade sonhar.


A erudição de MoreIa era profunda. Asseguro que seus talentos  não eram de
ordem comum, sua força de espírito era gigantesca.  Senti-a e, em muitos
assuntos, tornei-me seu aluno. Logo, porque  verifiquei que, talvez por causa de
sua educação, feita em Presburgo, ela me apresentava numerosos desses
escritos místicos que  usualmente são considerados como o simples sedimento
da primitiva literatura germânica. Por motivos que eu não podia imaginar  eram
essas obras o seu estudo favorito e constante. E o fato que, com o correr do
tempo, se tornassem elas também o meu pode ser atribuído à simples mas eficaz
influência do costume do exemplo.

Em tudo isso, se não me engano, minha razão tinha pouco a  fazer. Minhas
convicções, ou me desconheço, de modo algum eram conformes a um ideal, nem
se podia descobrir qualquer tintura

- nota de rodapé:
(1)  Publicado pela primeira vez no Southern Literary Messenger , abril de 1835. Título
Original Morela.
- fim da nota de rodapé.

das coisas místicas que eu lia, a menos que esteja grandemente enganado nos
meus atos ou nos meus pensamentos.
Persuadido disso , abandonei-me implicitamente à direção de minha esposa e
penetrei, de coração resoluto, no labirinto de seus estudos então... então, quando,
mergulhado nas páginas nefastas senti um espírito nefasto acender-se dentro de
mim.  Morela colocava a mão fria sobre a minha e extraia das cinzas de uma
filosofia morta algumas palavras profundas e singulares, cujo estranho sentido as
gravava a fogo em minha memória.

« Santa Maria! Volve o teu olhar tão belo, de lá dos altos céus, do teu trono
sagrado, para a prece fervente e para o amor singelo que te oferta, da terra, o filho
do pecado. Se é manhã, meio-dia, ou sombrio poente, meu hino em teu louvor tens
ouvido, Maria! Sê, pois, comigo, ó  Mãe  de Deus, eternamente, quer no bem ou no
mal, na dor ou na alegria! No tempo que passou, veloz, brilhante, quando nunca
nuvem qualquer meu céu escureceu, temeste que me fosse a inconstância
empolgando e guiaste minha alma a ti, para o que é teu. Hoje, que o temporal do
Destino ao Pastado e sobre o meu presente espessas sombras lança, fulgure ao
menos meu Futuro, iluminado por ti, pelo que é teu, na mais doce esperança! »

E então, hora após hora, eu me estendia a seu lado, imergindo-me na música de
sua voz, até que, afinal, essa melodia se maculasse de terror; então caía uma
sombra sobre minha alma, eu empalidecia, tremia internamente àqueles sons que
não eram da terra. Assim a alegria subitamente se desvanecia no horror e o mais
belo se transformava no mais hediondo, como o Hinnon se transformou em
Geena (2) .


É necessário fixar o caráter exato dessas disquisições que, irrompendo dos
volumes mencionados, formaram, por longo tempo, quase que único objeto de
conversação entre mim e  Morela . Mas os instruídos no que se pode denominar
moralidade teológica facilmente  o conceberão e os leigos, de qualquer modo, não
o poderiam entender. O extravagante panteismo de Fichte; a palingenésia modi-
ficada  de Pitágoras; e, acima de tudo, as doutrinas de Identidade, como as impõe
Schelling, eram esses geralmente os assuntos de discursão que mais beleza
apresentavam à imaginativa  Morela .

Aquela identidade que se chama pessoal, Locke, penso, define-a com realismo,
como consistindo na conservação do ser racional. E que por pessoa
compreendemos uma essência inteligente dotada  de razão, e desde que há uma
consciência que sempre acompanha  o pensamento, é ela que nos faz, a todos,
sermos o que chamamos

- nota de rodapé:
(2) Do latim, gehenna, que dizem vir do hebraico ge-hinnon, vale de Hinon, ao
sudoeste de  Jerusalém, no qual nos tempos da impiedade se sacrificava, a Maloc. 
É também, a denominação do Inferno, na Bíblia. (N. T.)
- fim da nota de rodapé.

nós mesmos, distinguindo-nos por isso de outros pensamentos  e dando-
nos nossa identidade pessoal. Mas o indivíduationis, a noção daquela identidade
que, com a morte está  ou não perdida para sempre, foi para mim, em todos os
tempo questão de intenso interesse, não só por causa da natureza embaraçosa e
excitante de suas conseqüências como pela maneira acentuada e agitada com
que  Morela  as mencionava.

Na verdade, porém, chegara o tempo em que o mistério da conduta de minha
esposa me oprimia como um encantamento. Eu não  podia suportar mais o
contato de seus dedos lívidos, nem grave de sua fala musical, nem o brilho de
seus olhos melancólicos. E ela sabia de tudo isso, porém não me repreendia;
consciente de minha fraqueza ou de minha loucura, e, a sorrir chamava-a Destino.
Parecia também consciente de uma causa, para mim ignota, do crescente
alheamento de minha amizade; me dava sinal ou mostra da natureza disso. Era,
contudo, mulher e fenecia dia a dia. Por fim, uma rubra mancha se fixou,
firmemente, na sua face e as veias azuis de sua fronte pálida se tornaram
proeminentes; por instantes minha natureza se fundia em piedade mas, a seguir,
meu olhar encontrava o brilho de seus olhos significativos e minha alma
enfermava e entontecia, com a vertigem de quem olhasse para dentro de qualquer
horrível e insondável abismo.

Poderei dizer então que ansiava, com desejo intenso e devorador pelo momento
da morte de  Morela ? Ansiei; mas o frágil espírito  agarrou-se à sua mansão de
argila por muitos dias, por muitas semanas, por meses penosos, até que meus
nervos torturados obtiveram domínio sobre meu cérebro e me tornei furioso com
a com demora e com o coração de um inimigo, amaldiçoei os dias, as horas e os
amargos momentos que pareciam ampliar-se cada vez mais, à medida que sua
delicada vida declinava como as sombras ao do morrer do  dia.
Numa tarde de outono, porém, quando os ventos silenciavam nos  céus,  Morela 
chamou-me a seu leito. Sombria névoa cobria a terra e um resplendor ardia sobre
as águas e entre as bastas folhas de outubro na floresta, como se um arco-íris
tivesse caído do firmamento.

- Este é o dia dos dias - disse ela, quando me aproximei. O mais belo dos dias para
viver ou para morrer.   É um belo dia para os filhos da terra e da vida... ah, e mais
belo ainda para as do céu e da morte!
Beijei-lhe a fronte, e ela continuou:
- Vou morrer e, no entanto, viverei.
-  Morela !
- Jamais existiram esses dias em que podias amar-me …mas aquela a quem na
vida aborreceste, depois de morta a adorarás.
-  Morela !
- Repito que vou morrer. Mas dentro de mim há um penhor  desta afeição - ah,
quão pequena! - que deveste sentir por  mim, Morela . E quando meu espírito
partir, a criança viverá - teu filho e meu filho, o filho de Morela.

. Mas os teus dias serão dias de pesar, que é a mais duradoura das impressões,
do mesmo modo que o  cipreste é a mais resistente das árvores. Porque as horas
da tua felicidade passaram e alegria não se colhe duas vezes numa vida, como as
rosas de Paesturo(3) duas vezes num ano. Não jogarás mais, com o tempo o jogo
do homem de Teos, mas, não conhecendo o mirto e a vinha, levarás contigo, por
toda parte, a tua mortalha como o muçulmano a sua em Meca.
Morela! - exclamei.     Morela ! como sabes disto?
Ela, porém, voltou o rosto sobre o travesseiro. Leve tremor agitou-lhe  os membros
e assim ela morreu, não mais ouvindo eu a sua voz.
Entretanto, como o predissera ela, seu filho, a quem, ao morrer, dera a vida, que só
respirou quando a mãe deixou de respirar, seu filho,  uma menina, sobreviveu. E,
estranhamente, cresceu em estatura e inteligência, vindo a tornar-se a
semelhança perfeita daquela que se fora. E eu a amava com um amor mais
fervoroso acreditava fosse possível sentir por qualquer criatura terrestre.

Mas dentro em pouco o céu dessa pura afeição se enegreceu e melancolia, o
horror, e a angústia nele se acastelaram como nuvens.  Disse que a criança
crescia, estranhamente, em estatura e inteligência. Estranho na verdade  , foi o
rápido crescimento de seu tamanho corporal, mas terríveis, oh!, terríveis eram os
tumultuosos pensamentos que sobre mim se amontoaram, enquanto observava o
desenvolvimento de sua mentalidade. Poderia ser de outra forma, diariamente,
descobria eu nas concepções da criança as energias adultas e as faculdades da
mulher? quando as lições da experiência brotavam dos lábios da infância? e
quando eu via a sabedoria ou as paixões da maturidade cintilarem a cada instante
nas olhos grandes e meditativos? Quando, repito, quando tudo se tornou
evidente aos meus sentidos aterrados, quando não o pude ocultar à minha alma
nem repeli-lo dessas percepções, tremiam ao recebê-lo, há de que admirar-se que
suspeitas de natureza terrível e excitante se introduzissem no meu espírito, ou
que meus pensamentos se tenham reportado, com horror, às estórias espantosas
e às arrepiantes teorias da falecida  Morela ? Arranquei à curiosidade do mundo
uma criatura a quem o destino me compeliu a adorar e, na rigorosa reclusão de
meu lar, velava com agoniante ansiedade tudo quanto concernia à bem-amada.
E enquanto rolavam os anos e eu contemplava, dia a dia, o seu rosto  santo,
suave e eloqüente, e estudava-lhe as formas maturescentes, dia após dia
descobria novos pontos de semelhança entre a criança e sua mãe, a melancólica
e a morta. E a todo instante se tornavam mais negras aquelas sombras de
semelhança e mais completas, mais definidas, mais inquietantes e mais
terrivelmente espantosas

 - nota de rodapé:
(3) Vila da antiga Itália, a noventa e cinco quilômetro" de Nápoles, famosa pelas
ruínas admiráveis que apresenta, destacando-se dentre elas as de dois templos.
um, dedicado a Netuno; o outro, a Ceres. (N. T.)
- fim da nota de rodapé.

no seu aspecto. Porque não podia deixar de admitir que sorriso era igual ao de
sua mãe; mas essa identidade demasiado feita fazia-me estremecer; não podia
deixar de tolerar que seus olhos fossem como os de  Morela ; mas eles também
penetravam vezes nas profundezas de minha alma com a mesma intensa e
desnorteante expressividade dos de  Morela . E no contorno de sua fronte
elevada, nos cachos de seu cabelo sedoso, nos seus dedos  pálidos  que nele
mergulhavam, no timbre musical e triste de sua fala e  -sobretudo   oh! acima de
tudo  , nas frases e expressões da morta sobre os lábios da amada e da viva,
encontrava eu alimento, um pensamento horrendo e devorador - para um verme
que não queria morrer.

Assim se passaram dois lustros de sua vida, e, contudo, permanecia minha filha
sem nome sobre a terra. "Minha filha" e meu amor" eram os apelativos
usualmente ditados por minha afeição de  pai, e a severa reclusão de sua vida
impedia qualquer outra relação. O nome de  Morela  acompanhara-a na morte. Da
mãe falara à filha; era impossível falar. De fato, durante o breve de sua existência,
não recebera esta última impressões do mundo  exterior, exceto as que lhe
puderam ser proporcionadas pelos estreitos limites de seu retiro. Mas afinal a
cerimônia do batismo sentou-se a meu espírito, naquele estado de agitação e
enervamento como uma libertação imediata dos terrores do meu destino. E na
fonte batismal hesitei na escolha de um nome. E numerosas denominações de
sabedoria e de beleza, de tempos antigos e modernos, de  minha e de terras
estrangeiras, vieram amontoar-se nos meus com outras tantas lindas
denominações, de nobreza, de ventura , de  bondade. Quem me impeliu então a
perturbar a memória da   sepultada? Que demônio me incitou a suspirar aquele
som e simples lembrança sempre fazia fluir, em torrentes, o sangue das fontes do
coração? Que espírito maligno falou dos recessos minha alma quando, entre
aquelas sombrias naves e no silêncio da  noite, eu sussurrei aos ouvidos do
santo homem as sílabas "Morela?  Quem, senão o demônio, convulsionou as
feições de minha filha e sobre elas espalhou tons de morte, quando,
estremecendo ao aquele som quase inaudível, volveu os olhos límpidos da terra
para o céu e, caindo prostrada sobre as negras lajes de nosso soléu de família,
respondeu: "Estou aqui!"?

Distinta, fria e calmamente precisos, esses tão poucos e tão simples sons
penetraram-me nos ouvidos e, depois, como chumbo retido, rolaram, sibilantes,
dentro do meu cérebro. Anos e anos podem-se passar, mas a lembrança daquela
época, nunca. desconhecia eu de fato as flores e a vinha, mas o acônito e o
cipreste ensombraram-me noite e dia. E não guardei memória de tempo ou de
lugar, e as estrelas da minha sorte sumiram do céu e desde então a terra se
tornou tenebrosa e suas figuras passaram  perto de mim como sombras
esvoaçantes, e entre elas só uma vislumbrava:  Morela . Os ventos do firmamento
somente um murmuravam aos meus ouvidos e o marulho das ondas sussurra
"Morela!" Ela, porém, morreu e com minhas próprias mãos levei-a ao túmulo. E ri,
uma risada longa e amarga, quando não achei  traços da primeira  Morela  no
sepulcro em que depositei a segunda.


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