sexta-feira, 14 de maio de 2010

BERENICE

BERENICE (1)

Dicebant mihi sodalez, si sepulchrum amicae visifarem, curas meas aliquantulum fore
levatas.  (2) 
Ebn  ZAIAT

A DESGRAÇA É VARIADA. O infortúnio da terra é multiforme. Arqueando-se sobre
o vasto horizonte como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas,
distintas e, contudo, nitidamente misturadas . Arqueando-se sobre o vasto
horizonte como o arco-íris! Como de um exemplo de beleza, derivei eu uma
imagem de desencanto? Da aliança de paz, uma semelhança de tristeza? E que,
assim como na ética o mal é uma conseqüência do bem, da mesma realidade, da
alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de
hoje, ou as amarguras que existem agora têm sua origem nas alegrias que podiam
ter existido.

Meu nome de batismo é Egeu. O de minha família não revelarei. Contudo não há
torres no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancólicas do solar de
meus avós. Nossa estirpe tem sido chamada de  uma raça de visionários. Em
muitos pormenores notáveis, do caráter da mansão familiar, nas pinturas do salão
principal, nas tapeçarias dos dormitórios, nas cinzeladuras de algumas colunas
de armas, porém, mais especialmente, na galeria de quadros no estilo da
biblioteca e, por fim, na natureza muito peculiar dos livros que ela continha, há
mais que suficiente prova a justificar aquela denominação.
Recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligados àquela sala e
aos seus volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha mãe. Ali nasci. Mas
é ocioso dizer que não havia vivido antes, que a alma não tem existência prévia.
Vós negais isto. Não discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, não procuro
convencer os demais. Sinto, porém, uma lembrança de formas aéreas, de  olhos
espirituais e expressivos, de sons musicais, embora tristes;  uma lembrança que
não consigo anular; uma reminiscência semelhante a uma sombra, vaga, variável,
indefinida, inconstante; e como uma sombra, também, na impossibilidade de
livrar-me dela, enquanto  a luz de minha razão existir.
Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que
parecia, mas não era, o nada, para logo cair nas ver-

- nota de rodapé:
(1) Publicado pela primeira 'vez no Souther'n  Literary Messenger, março de 1835
original: Título Original BERENICE.
(2) Meus companheiros me asseguravam que visitando o túmulo de minha amiga
conseguiria, em parte, alivio para as minhas tristezas.
- fim da nota de rodapé.

dadeiras regiões da terra das fadas, num palácio fantástico , nos  estranhos
domínios do pensamento monástico e da erudição não  é de admirar que tenha
lançado em torno de mim um olhar ardente  e espantado, que tenha consumido
minha infância nos livros e dissipado minha juventude em devaneios; mas é
estranho que ao perpassar dos anos e quando o apogeu da maturidade me
encontrou ainda na mansão de meus pais, uma maravilhosa inércia tombado
sobre as fontes da minha vida, maravilhosa a total inversão que se operou na
natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me
afetavam como visões, e somente como  visões, enquanto que as loucas idéias
da terra dos sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de minha existência
cotidiana, na realidade, a minha absoluta e única existência.
*
Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos, no solar paterno. Mas
crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado na minha melancolia;
ela, ágil, graciosa e exuberante de energia. Para ela, os passeios pelas encostas
da colina. Para mim, estudos do claustro. Eu, encerrado dentro do meu próprio
coração  e dedicado, de corpo e alma, à mais intensa e penosa    meditação . Ela,
divagando descuidosa pela vida, sem pensar em sombras no seu caminho, ou no
vôo silente das horas de asas lutuosas. Berenice! Quando lhe invoco o nome...
Berenice!, das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas
recordações. Ah, bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos
dias de sua jovialidade e alegria! Oh, deslumbrante, porém fantástica beleza! Oh,
sílfide entre os arbustos de Arnheim! Oh, náiade à beira de suas fontes! E depois...
depois tudo é mistério e uma estória que não deveria ser contada. Uma doença  
uma doença - uma fatal doença - soprou como um símum sobre seu corpo. E
precisamente quando a contemplava, o espírito da metamorfose arrojou-se sobre
ela, invadindo-lhe a mente, os hábitos e o caráter e, da maneira mais sutil e terrível,
perturbando-lhe a própria personalidade.  Ai! O destruidor veio e se foi, e a
vítima… . onde está ela? Não a conhecia... ou não mais a conhecia como
Berenice!
Entre a numerosa série de males acarretados por aquela fatal e primeira doença,
que realizou tão horrível revolução no ser moral e físico de minha prima, pode-se
mencionar, como o mais aflitivo e o mais obstinado, uma espécie de epilepsia, que
não poucas vezes, terminava em catalepsia, muito semelhante à morte efetiva e da
qual despertava ela, quase sempre, duma maneira assustadoramente  subitânea.
Entrementes, minha própria doença aumentava, pois fora dito que para ela não
havia remédio, e assumiu afinal um  caráter de monomania, de forma nova e
extraordinária, que, hora em hora, de minuto em minuto, crescia em vigor e por fim 
veio a adquirir sobre mim a mais incompreensível ascendência. Esta monomania,
se assim posso chamá-la, consistia numa irritabilidade  mórbida daquelas
faculdades do espírito que a ciência metafísica
denomina faculdades da atenção". E mais que provável nao me entenderem . Mas
temo, deveras, que me seja totalmente impossível transmitir à mente do comum
dos leitores uma idéia adequada daquela nervosa  intensidade da atenção com
que, no meu caso, as faculdades meditativas (para evitar a linguagem técnica) se
aplicava e absorvia na contemplação dos mais vulgares objetos do mundo. 
Meditar infatigavelmente longas horas, com a atenção cravada em alguma frase
frívola, à margem de um livro ou no seu aspecto tipográfico, ficar absorto, durante
a melhor parte dum dia de verão em contemplação duma sombra extravagante,
projetada obliquamente sobre a tapeçaria, ou sobre o soalho; perder uma noite
observar a chama inquieta duma lâmpada, ou as brasas de um fogão; sonhar dias
inteiros com o perfume duma flor; repetir monotonamente, alguma palavra
comum, até que o som, a repetição freqüente, cesse de representar ao espírito a
menor idéia; perder toda a sensação de movimento ou de existência física, em
virtude de uma absoluta quietação do corpo, prolongada e obstinadamente 
mantida, tais eram as mais comuns e menos perniciosas aberrações, provocadas
pelo estado de minhas faculdades mentais não, de fato, absolutamente sem
exemplo, mas certamente desafiando qualquer espécie de análise ou explicação.
Sejamos, porém, mais explícitos. A excessiva, ávida e mórbida atenção assim
excitada por objetos de seu natural triviais, não deve ser confundida, a propósito,
com aquela propensão à meditação,  comum a toda a humanidade e mais
especialmente do agrado das pessoas de imaginação ardente. Nem era
tampouco, como se poderia a princípio supor, um estado extremo, ou uma
exageração de tal propensão, mas primária e essencialmente distinta e diferente
dela . Naquele caso, o sonhador, ou entusiasta, estando interessado por um
objeto, geralmente não trivial, perde, sem o perceber, de vista este objeto, através
duma imensidade de deduções e sugestões deles provindas, até que, chegando
ao fim daquele sonho acordado, muitas vezes repletos de voluptuosidade,
descobre estar o incitamentum causa primária de suas meditações, inteiramente
esvanecido e esquecido. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente
frívolo, embora assumisse, por intermédio de minha visão doentia, uma
importância irreal e refratária. Poucas ou nenhumas reflexões eram feitas e estas
poucas voltavam, obstinadamente , ao objeto primitivo como a um centro. As
meditações nunca eram agradáveis, e ao fim do devaneio, a causa primeira, longe
de estar fora de vista atingira aquele interesse sobrenaturalmente exagerado que
que era a característica principal da doença. Em uma palavra: as faculdades da
mente mais particularmente exercitadas em mim eram, como já disse antes, as da
atenção, ao passo que no sonhador-acordado são as especulativas.
Naquela época, os meus livros, se não contribuíam eficazmente para irritar a
moléstia, participavam largamente, como é fácil perceber-se,
pela sua natureza imaginativa e inconseqüente, das qualidades
características da própria doença. Bem me lembro, entre outros, do tratado do
nobre italiano, Coelius Secundus Curio de amplitudine beati regni dei; da grande
obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus; do De Carne Christí, de Tertuliano,
no qual a paradoxal sentença: Mortuus' est Dei filius; credible est quia ineptum
est; et sepultus resurrexít; certum est quia impossibíle est, absorveu meu tempo
todo, durante semanas de laboriosa e infrutífera investigação.
Dessa forma, minha razão, perturbada, no seu equilíbrio por coisas simplesmente
triviais, assemelhava-se àquele penhasco marítimo de que fala Ptolomeu
Hefestião, o qual resistia inabalável a questão  da violência humana e ao furioso
ataque das águas e ventos, mas tremia ao simples toque da flor chamada
asfódelo. E  embora a um pensador desatento possa parecer fora de dúvida que a
alteração produzida pela lastimável moléstia no estado mortal de Berenice
fornecesse motivos vários para o exercício daquela intensa e anormal meditação,
cuja natureza tive dificuldade em explicar tal não se deu absolutamente. Nos
intervalos lúcidos de minha enfermidade, a desgraça que a feria me dava
realmente pena e me afetava fundamente o coração aquela ruína total de sua vida
alegre e doce. Por isso não deixava de refletir muitas vezes, com amargura, nas
causas prodigiosas que tinham tão subitamente produzido modificação tão
estranha. Mas essas reflexões não participavam da idiossincrasia de minha
doença, tais como teriam ocorrido  em idênticas circunstâncias, à massa ordinária
dos homens. Fiel a  seu próprio caráter, meu desarranjo mental preocupava-se
com as  menos importantes porém mais chocantes mudanças operadas na 
constituição física de Berenice, na estranha e mais espantosa alteração de sua
personalidade.
Posso afirmar que nunca amara minha prima, durante os dias mais brilhantes de
sua incomparável beleza. Na estranha anomalia  de minha existência, os
sentimentos nunca me provinham do coração, e minhas paixões eram sempre do
espírito. Através do crepúsculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta,
ao meio-dia no silêncio de minha biblioteca, à noite, esvoaçara ela diante de meus
olhos e eu a contemplara, não como a viva e respirante Berenice, mas como a
Berenice de um sonho; não como um ser da terra, um ser carnal, mas como a
abstração de tal ser; não como uma coisa para admirar, mas para ser analisada;
não como objeto para amar, mas como o tema da mais abstrusa, embora
inconstante, especulação. E agora.. . agora eu estremecia na sua presença e
empalidecia ao vê-la aproximar-se; contudo, lamentando  amargamente sua
deplorável decadência, lembrei-me de que ela me havia amado muito tempo, e,
num momento fatal, falei-lhe em casamento.
Aproximava-se, enfim, o período de nossas núpcias quando, numa  tarde de
inverno de um daqueles dias intempestivamente cálidos,  sossegados e nevoentos, que são a alma do belo Alcíone, (3) me sentei no mais recôndito gabinete da biblioteca.

Julgava estar sozinho, mas erguendo a vista divisei Berenice, em pé, à minha frente.
Foi a minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da atmosfera,
ou o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinéreas roupagens que lhe caíam
em torno do corpo, que lhe deu aquele contorno indeciso e trêmulo? Não sei dizê-
lo. Ela não disse uma palavra e eu por forma alguma podia emitir uma só sílaba.
Um gélido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensação de intolerável ansiedade
me oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma , e recostando-me na
cadeira, permaneci por algum tempo imóvel e sem respirar, com os olhos fixos no
seu vulto. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum vestígio da criatura de outrora
se vislumbrava numa linha sequer de suas formas. O meu olhar ardente pousou-
se afinal em seu rosto.
A fronte era alta e muito pálida, e de uma placidez singular. O cabelo, outrora
negro, de azeviche, caía-lhe parcialmente sobre a testa e sombreava as fontes
encovadas com numerosos anéis, agora de um amarelo vivo, em chocante
discordância, pelo seu caráter fantástico , com a melancolia que lhe dominava o
rosto. Os olhos, sem vida e sem brilho, pareciam estar desprovidos de pupilas.
Desviei involuntariamente a vista daquele olhar vítreo para olhar-lhe os lábios
delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os
dentes da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a
Deus que eu nunca os tivesse visto, tendo-os visto, tivesse morrido!
*
O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima havia
saido do aposento. Mas do aposento desordenado do meu cérebro não havia
saído, ai de mim!, e não queria sair o  espectro branco de seus dentes lívidos. Nem
uma mancha se via em sua superfície, nem uma pinta no esmalte, nem uma falha
nas suas  pontas, que aquele breve tempo de seu sorriso não houvesse gravado
na minha memória. Via-os agora, mesmo mais distintamente do que os vira antes.
Os dentes!. . . Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda parte, visíveis, palpáveis.
diante de mim. Compridos, estreitos  e excessivamente brancos, com os pálidos
lábios contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível
crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria minha monomania e em vão  lutei
contra sua estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo
exterior, só pensava naqueles dentes. Queria-os com frenético desejo. Todos os
assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva
contemplação.
Eles, somente eles estavam presentes aos olhos de meu espírito,e eles , na sua
única individualidade, se tornaram a essência de

- nota de rodapé:
(3) Porque como Júpiter, durante a estação invernosa, dá duas vezes sete de
calor, os homens chamavam este benigno e temperado tempo de ama da bela
Alcione" (SIMôNIDES).
- fim da nota de rodapé.

minha vida mental. Via-os sob todos os aspectos. Revolvi-os em  todas as
direções. Observava-lhes as características. Detinha-me em todas as suas
peculiaridades. Meditava em sua conformação refletia na alteração de sua
natureza. Estremecia ao atribuir-lhe em  imaginação, faculdades de sentimento e
de sensação, e, do mesmo quando desprovidos dos lábios, capacidade da
expressão moral. Dizia-se  com razão, de Mademoisselle Sallé que: tous ses pas
étaient de sentiments, e de Berenice que: tous ser dentr étaien  des idées!(4) Ah,
esse foi o pensamento absurdo que me destruiu , des idées! Ah, essa era a razão
pela qual eu os cobiçava tão loucamente . Sentia que somente a posse deles me
poderia restituir a paz para sempre, fazendo-me voltar a razão.
E assim cerrou-se a noite em torno de mim. Vieram as trevas demoraram-se, foram
embora. E o dia raiou mais uma vez e os nevoeiros de uma segunda noite de novo
se adensaram em torno de mim. E ainda sentado estava, imóvel, naquele quarto
solitário  ainda mergulhado em minha meditação, ainda com o dentes mantendo
sua terrível ascendência sobre mim, a flutuar com  a mais viva e hedionda nitidez,
entre as luzes mutáveis e as sombras  do aposento. Afinal, explodiu em meio de
meus sonhos um grito de horror e de consternação, ao qual se seguiu, depois
pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de surdos lamentos de tristeza e
pesar. Levantei-me e, escancarando uma das portas da  biblioteca, vi, de pé, na
antecâmara, uma criada, toda em lágrimas que me disse que Berenice havia. . .
morrido! Sofrera um ataque  epiléptico pela manhã e agora, ao cair da noite, a
cova estava pronta  para receber seu morador e todos os preparativos do enterro
terminados.

Com o coração cheio de angústia, oprimido pelo temor, dirigi com repugnância,
para o quarto de dormir da defunta. Era quarto vasto, muito escuro, e eu me
chocava, a cada passo, com os preparativos do sepultamento. Os cortinados do
leito, disse-me um criado, estavam fechados sobre o ataúde e naquele ataúde,
acrescentou ele, em voz baixa, jazia tudo quanto restava de Berenice.
Quem, pois, me perguntou se eu não queria ver o corpo? Não vi moverem-se os
lábios de ninguém; entretanto, a pergunta realmente feita e o eco das últimas
sílabas ainda se arrastava pelo quarto. Era impossível resistir e, com uma
sensação opressiva, dirigi-me a passos tardos para o leito. Ergui de manso as
sombrias  dobras das cortinas; mas, deixando-as cair de novo, desceram sobre
meus ombros e, separando-me do mundo dos vivos, me encerraram na mais
estreita comunhão com a defunta.
Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico  do ataúde me
fazia mal e imaginava que um odor deletério exalava já do cadáver. Teria dado
mundos para escapar, para livrar-me
- nota de rodapé:
(4)  Todos os seus passos eram sentimentos. . . todos os seus dentes idéias.
Idéias (N. T. )
- fim  da nota de rodapé.

da perniciosa influência mortuária, para respirar, uma vez ainda, o ar puro dos
céus eternos. Mas, faleciam-me as as forças para mover-me os joelhos tremiam e
me sentia como que enraizado no solo contemplando fixamente o rígido cadáver,
estendido ao comprido np caixão aberto.
Deus do céu! Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo da
defunta se mexera no sudário que a envolvia? Tremendo de inexprimível terror,
ergui lentamente os olhos para ver o cadáver. Haviam-lhe amarrado o queixo com
com um lenço, o qual não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam
numa espécie de sorriso, e por entre sua moldura melancólica os dentes de
Berenice, brancos, luzentes, terríveis me fixavam ainda, com uma realidade
demasiado vivida. Afastei-me convulsivamente, do leito, sem pronunciar uma
palavra, como um louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de
morte.
'Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só.
Parecia que havia pouco despertara de um sonho confuso e agitado que era
então meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr do sol, Berenice tinha
sido enterrada. Mas, durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer
percepção positiva, ou pelo definida.
Sua recordação, porém,  estava repleta de horror, horror mais horrível porque
vindo do impreciso, terror mais terrível porque saído da ambigüidade. Era uma
página espantosa do registro de minha existência , toda escrita com sombra e
com medonhas e ininteligíveis recordações. Tentava decifrá-la, mas em vão; e de
vez em quando, como o espírito de um som evadido, parecia-me retinir nos
ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera alguma coisa;
que era, porém? Fazia a mim mesmo tal pergunta em voz alta, e os ecos do
aposento me respondiam: Que era? a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e
perto dela estava uma caixinha. Não era de forma digna de nota e eu freqüentemente
 a vira antes, pois pertencia ao médico da família; mas, como viera ter
ali, sobre minha mesa, e por que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena
importar-me com tais coisas e meus olhos por fim caíram sobre as páginas
abertas de um livro, na sentença nelas sublinhada. Eram as palavras singulares,
simples, do poeta Ebn Zaiat: Dícebant míhi sodales, si sepulchrum amicae
visitarem, curas meus aliquantulum fore levatas. Porque  então, ao lê-las, os
cabelos de minha cabeça se eriçaram até a ponta, e o sangue de meu corpo se
congelou nas veias?
Uma leve pancada soou na porta da biblioteca. E, pálido como o brilhante de um
sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava transtornada
de pavor e ele me falou numa voz trêmula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi
frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem que perturbara o silêncio da
noite …todos em casa se reuniram. . . saíram procurando em direção ao som. E
depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao falar-me de um túmulo
violado. . . de um corpo desfigurado,
desamortalhado, mas que ainda respirava, ainda vivia!
Apontou para minhas roupas; estavam sujas de coágulos de sangue. Eu nada
falava e ele pegou-me levemente na mão; gravavam-se nela os sinais de unhas
humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à parede: era uma
pá.
Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que nela se achava. Mas não
pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com força,
quebrando-se em pedaços. E dela, com um som tintinante, rolaram vários
instrumentos de  cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas pequenas,
como que de marfim, que se espalharam por todo o assoalho.


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