sexta-feira, 8 de agosto de 2008

UMA "ESTÓRIA" DAS MONTANHAS RAGGED

UMA "ESTÓRIA" DAS MONTANHAS RAGGED (1)

DURANTE os fins do ano de 1827, quando residia nas proximidades Charlottesville (Virgínia), conheci casualmente o Sr. Augusto Bedloe. Esse jovem cavalheiro era notável, a todos os respeitos, e provocava-me profundo interesse e curiosidade. Achei impossível compreender-lhe os modos. tanto físicos como morais. Sobre sua família não pude obter informação satisfatória. Donde vinha ele, nunca pude verificar. Mesmo acerca de sua idade - embora o considere um jovem cavalheiro - havia algo que me deixava perplexo, em não pequeno grau. Ele, certamente, parecia jovem e fazia questão de falar sobre sua juventude; mas havia momentos em que pouco me custaria imaginar que ele tinha um século de idade.



- nota de rodapé: (1) Publicado pela primeira vez no Godey’s Lady’s Book, abril de 1844, este conto é connecido também sob o título de "Reminíscências do Sr. Augusto Bedloe". Título original: A TALE OF THE RAGGED MOUNTAINS. Rogged Mountains (Montanhas Fragosas). Como o próprio nome trata-se indica trata-se de uma cadeia de montanhas de difícil acesso e formando parte das Montanhas Azuis ( blue Ridger ) localizadas na parte oriental dos Aleg6anis Estados da Virgínia e CaroIina do Norte. EUA. (N.T.)



De modo algum, porém, era ele mais singular do que na aparência pessoal. Estranhamente alto e magro. Muito curvado. Tinha os membros excessivamente longos e descarnados. A testa era ampla e baixa. A tez inteiramente exangue. A boca era grande e flexível e seus dentes, embora sãos, mais amplamnte ( nota da ledora: erro de impressão no livro, amplamnte, acredito ser amplamente, a palavra correta. - fim da nota ) irregulares do que eu já vira em qualquer dentadura humana. A expressão de seu sorriso, contudo, de modo algum desagradava, como se poderia supor; mas não tinha qualquer variação. Era sempre de profunda melancolia, de uma tristeza incessante e sem fases. Seus olhos eram anormalmente grandes e redondos como os de um gato. As pupilas, além disso, depois de qualquer acréscimo ou diminuição da luz, contraíam-se ou dilatavam-se, tal como se observa na raça felina. Em momento, de exitação, tornavam-se elas brilhantes, em um grau quase incocebivel; pareciam emitir raios luminosos, não de um clarão refletido, mas próprio, como o de uma vela ou o do sol; e, entretanto, sua aparência comum era tão inteiramente abúlica, velada e nebulosa, que dava a idéia dos olhos de um cadáver há muito enterrado. Tais particulandades pessoais pareciam causar-lhe muito aborrecimento e ele continuamente aludia a elas, numa espécie de estilo, entre a explicação e a desculpa, o qual, quando o ouvi pela primeira vez, me impressionou muito dolorosamente. Logo, contudo, acostumei-me a ele e meu constrangimento desapareceu. Parecia ser sua intenção insinuar, mais do que afirmar de modo direto, que, fisicamente, ele nem sempre fora o que era então, que uma longa série de ataques nevrálgicos tinham-no reduzido de uma condição de beleza pessoal, mais do que comum, àquela que eu via. Há muitos anos vinha sendo ele tratado por um médico chamado Templeton, um velho de talvez setenta anos de idade, a quem ele encontrara pela primeira vez em Saratoga e de cujos cuidados, enquanto ali estivera, havia recebido, ou imaginava que havia recebido, grande benefício. O resultado foi que Bedloe, que era rico, fizera um contrato com o Dr. Templeton, por meio do qual este último, em virtude de fartos honorários anuais, tinha consentido em dedicar seu tempo e sua experiência médica exclusívamente ao cuidado do inválido.


Na sua mocidade, o Dr. Templeton viajara bastante e em Paris se havia convertido num grande seguidor das doutrinas de Mesmer. Foi inteiramente graças a remédios magnéticos que conseguira aliviar as agudas dores de seu paciente e este êxito tinha, mui naturalmente, inspirado a Bedloe certo grau de confiança nas opiniões preconizavam esses remédios. O doutor, porém, como todos os entusiastas, se esforçara fortemente para converter por completo seu paciente. E afinal teve tanto êxito que induziu o doente a submeeter-se a numerosas experiências. Em consequência de uma frequênte repetição destas sobrevieram resultados que nos últimos dias se tornaram tão comuns a ponto de atrair pouca ou nenhuma atenção, mas que, no período a respeito do qual escrevo, eram raramente conhecidos na América. Quero dizer que entre o Dr. Templeton e Bedloe tinha-se gerado, pouco a pouco, uma afinida ou relação magnética bastante distinta e fortemente acentuada. Não estou, porém, preparado para asseverar que essa afinidade se estendesse além dos limites do simples poder de produzir o sono, mas este mesmo poder havia atingido grande intensidade. À primeira tentativa de provocar a sonolência magnética, o magnetizador fora inteiramente mal sucedido. Na quinta ou sexta, conseguiu-o diminutamente e depois de demoradíssimo esforço. Somente na décima-segunda o êxito foi completo. Depois disso, a vontade do paciente submeteu-se rapidamente à do médico. De modo que, quando conheci os dois, pela primeira vez, o sono era provocado quase que instantaneamente pela simples vontade do operador, mesmo quando o inválido não estava cônscio da presença daquele. E somente agora, no ano de 1845, quando milagres semelhantes são testemunhados diariamente por milhares de pessoas, é que uso aventurar-me a lembrar esta aparente impossibilidade como uma questão de fato séria.


O temperamento de Bedloe era, no mais alto grau, sensível, excitável, entusiástico. Sua imaginação era singularmente vigorosa e criadora, e sem dúvida recolhia força adicional do uso habitual da morfina, que ele bebia em grande quantidade e sem a qual teria achado impossível viver. Era seu hábito tomar uma enorme dose dela, imediatamente depois do pequeno almoço, de cada manhã ou antes, imediatamente depois de uma xícara de café forte. Pois ele não comia nada antes do meio-dia, e depois saía sozinho ou acompanhado simplesmente por um cachorro, para dar um longo giro entre a cadeia de colinas ásperas e sombrias que se estendem a oeste e ao sul de Charlottesville e são ali honradas com o de Rogged Mountains (Montanhas Fragosas).


Num dia tristonho, quente e nevoento dos fins de novembro e durante o estranho interregno das estações que na América se denomina o "verão indiano", o Sr. Bedloe partiu, como de custume, para as colinas. Passou o dia e ele ainda não voltara.


Cerca das oito horas da noite, tendo ficado seriamente alarmados com esta ausência prolongada, estávamos prestes a sair em busca dele, quando inesperadamente apareceu, num estado de saúde não pior do que o de costume, e um tanto mais animado do qque comumente. O relato que nos fez de sua expedição e dos acontecimentos que o haviam retido foi de fato singular.Vocês hão de lembrar-se - disse ele - que eram nove horas da manhã quando deixei Charlottesville. Dirigi meus passos imediatamente para as montanhas e, cerca das dez horas, penetrei numa garganta que era inteiramente nova para mim. Acompanhei os meandros dessa passagem com bastante interesse. O cenário que se apresentava por todos os lados, embora mal se pudesse denominá-lo de grandioso, caracterizava-se por um indescritível e para mim delicioso aspecto de lúgubre desolação. A solidão absolutamente virgem. Não podia deixar de acreditar que a verderelva e as rochas cinzentas sobre as quais eu caminhava jamais tinham sido antes pisadas por algum pé humano. Tão inteiramente fechada e de fato inacessível - exceto através de uma série de obstáculos - é a entrada da ravina que não é de modo algum impossível tivesse eu sido, de fato, o primeiro aventureiro, o verdadeiramente primeiro e único aventureiro que jamais penetrara em seu recesso.


O espesso e característico nevoeiro ou fumaça que distingue o verão indiano, e que agora pendia pesadamente sobre todas as coisas, servia, sem dúvida, para aprofundar as vagas impressões que essas coisas criavam. Tão denso era esse agradável nevoeiro que eu não podia ver ou enxergar senão a menos de doze jardas do caminho que se abria à minha frente. Essa vereda era extremamente sinuosa e, como o sol não podia ser visto, bem cedo perdi toda idéia da direção em que caminhava. Entrementes, a morfina produziu seu costumeiro efeito: o de dotar todo o mundo exterior de intenso interesse. No tremer de uma folha, na tonalidade de uma lâmina de relva, na forma de um trevo, no bezoar de uma abelha, no cintilar de uma gota de orvalho, no bafejo do vento, nos fracos odores que vinham da floresta, havia todo um mundo de sugestão, uma alegre e matizada sucessão de pensamentos rapsódicos e desordenados.


Assim ocupado, caminhei algumas horas, durante as quais o nevoeiro se adensou em torno de mim com tal intensidade que, afinal, me vi obrigado a andar às apalpadelas. E então, uma indescritível inquietação apoderou-se de mim, uma espécie de hesitação nervosa e de tremor. Receava caminhar, com medo de ser precipitado em algum abismo. Recordava-me também de estranhas estórias contadas a respeito daquelas Montanhas Fragosas e de singulares e seIvagens raças de homens que habitavam seus bosques e cavernas. Mil vagas fantasias me oprimiam e desconcertavam, fantasias mais aflitivas porque vagas. Mui subitamente, minha atenção foi detida pelo bater rumoroso de um tambor.Meu espanto foi deveras extremo. Um tambor naquelas colinas era uma coisa inaudita. Maior surprêsa não me causaria o toque da trombeta do Arcanjo. Porém nova e ainda mais espantosa fonte de interesse e de perplexidade surgiu. Soou um insólito chocalhar ou tintinar, semelhante ao de um molho de grandes chaves, e no mesmo instante um homem de rosto escuro e seminu passou correndo por trás de mim, dando um berro. Chegou tão perto de mim que senti seu quente hálito no meu rosto. Levava numa das mãos um instrumento formado de um conjunto de anéis de aço, que ele agitava violentamente ao correr. Mal havia desaparecido no nevoeiro à minha frente, ofegando atrás dele, de boca aberta de olhos chispantes, saltou um enorme animal. Não podia enganar a seu respeito. Era uma hiena.

À vista daquele monstro, mais abrandou que aumentou meu terror, pois estava agora certo de que sonhava e procurei despertar a consciência adormecida. Caminhei audaciosa e vivamente paradiante, esfreguei os olhos, gritei alto, belisquei meus braços. Avistei um pequeno lacrimal e, ali parando, banhei minhas mãos, a cabêça e o pescoço. Isto pareceu dissipar as equivocas sensações que me tinham até ali incomodado. Ergui-me, como pensava, um novo homem, e continuei rápida e complacentemente meu caminho desconhecido.


Afinal, completamente acabrunhado pelo esforço e por certa opressão da atmosfera, sentei-me debaixo de uma árvore. Logo luzio um fraco clarão do sol e as sombra das folhas da árvore se projetou, leve mas nitidamente, sobre a relva. Contemplei maravilhado essa sombra por muitos minutos. Sua forma me petrificava de espanto. Olhei para cima. A árvore era uma palmeira. Ergui-me então, às carreiras, e num estado de terrível agitação, pois a idéia de que estivesse sonhando já não me servia. Eu vi, eu senti que estava completamente senhor de meus sentidos. E estes sentidos traziam agora à minha alma um mundo de sensações novas e singulares. O calor tornou-se imediatamente intolerável. Estranho odor saturava a brisa. Um murmúrio contínuo e grave, como o que se desprende de um rio cheio, mas que flui suavemente, chegou aos meus ouvidos entremeado do característico zumbido de numerosas vozes humanas. Enquanto eu o escutava num paroxismo de espanto que não pre ciso tentar descrever, forte e breve rajada de vento varreu o pesado nevoeiro como por artes de magia.


Achei-me ao pé de uma alta montanha, contemplando lá baixo vasta planície rasgada por majestoso rio. À margem daquele rio erguia-se uma cidade de aspecto oriental, semelhante às descritas nas Mil e Uma Noites, mas de caráter muito mais singular do que qualquer das ali narradas. Da posição em que me achava bem acima do nível da cidade, podia eu avistar todos os seus cantos e esquinas como se estivessem traçados em um mapa. As ruas pareciam inumeráveis e se cruzavam irregularmente em todas as direções, mas pareciam antes longas avenidas sinuosas do que ruas e totalmente apinhadas de habitantes. As casas eram insolitamente pitorescas. De cada lado havia uma verdadeira profusão de balcões, varandas, minaretes, nichos e sacadas fantasticamente esculpidas. Abundavam os bazares, onde se ostentavam ricas mercadorias, em infinita variedade e cópia: sedas, musselinas, as mais ofuscantes cutelarias, as mais magnificentes jóias e gemas. Além dessas coisas viam-se por todos os lados bandeiras e palanquins, liteiras com soberbas mulheres completamente veladas, elefantes pomposam ajaezados, idolos grotescamente talhados, tambores, estandartes, gongos, lanças, maçãs de ouro e de prata. E em meio da multidão e do clamor e do geral emaranhamento e confusão, em meio do milhão de homens negros e amarelos, de turbante e de túnica , de barbas flutuantes, vagueava uma incontável multidão de touros sagrados, cheios de fitas, enquanto vastas legiões de macacos, sujos, mas sagrados, trepavam, tagarelavam e guinchavam, em torno cornijas das mesquitas, ou penduravam-se dos minaretes e sacadas.


Das ruas gitantes até as margens do rio desciam inúmeras séries de degraus conduzindo aos lugares de banho, enquanto o próprio rio parecia forçar passagem com dificuldade através das esquadras de navios pesadamente carregados que, por toda a parte lhe cobriam a superfície. Fora dos limites da cidade erguiam-se numerosos e majestosos grupos, palmeiras e coqueiros, com outras árvores gigantescas e fantásticas, seculares. E aqui e ali podiam-se ver uma plantação de arroz, a cabana de palha de um camponês, uma cisterna, um templo isolado, um acampamento de ciganos ou uma solitária e graciosa rapariga caminhando, com uma bilha à cabeça, para as margens do rio magnífico.Vocês dirão agora. sem dúvida, que eu sonhava. Mas não é verdade. O que eu via, o que eu ouvia, o que eu sentia, o que eu nada tinham da sensação inconfundível do sonho. Tudo era rigorosamente real. A princípio, duvidando de que estivesse realmente acordado, iniciei uma série de experiências que logo me convenderam de que estava efetivamente desperto. Ora, quando algém sonha, e no sonho suspeita de que está sonhando, a suspeita nunca deixa de confirmar-se e o dormente é quase imediatamente despertado. De modo que Novalis não erra em dizer que : nós estamos quase despertando, quando sonhamos que estamos sonhado . Tivesse-me ocorrido a visão; como a descrevo. sem que a suspeitasse de ser sonho, então um sonho ela poderia verdadeiramente ter sido, mas, ocorrendo como ocorreu, e suspeitada como era, sou forçado a classificá-la entre outros fenômenos.


- Nisso não digo que o senhor não tenha razão - observou o Dr. Templeton -, mas prossiga. O senhor levantou-se e desceu para a cidade…- Levantei-me - continuou Bedloe, encarando o médico, com um ar de profundo espanto - levantei-me, como o senhor diz e desci para a cidade. Em meu caminho deparei com uma multidão imensa apinhando todas as avenidas, andando sempre na mesma direção e demonstrando, em todas as ações, a agitação mais selvagem. De súbito, e obedecendo a algum impulso inconcebível, fiquei intensamente tomado de interesse pessoal pelo que estava sucedendo.Pareceu-me sentir que tinha importante papel a representar, sem exatamente compreender o que fosse. Contra a multidão que me rodeava, contudo, experimentei profundo sentimento de animosidade. Arranquei-me do meio dela e, velozmente, alcancei a cidade por meio de um atalho e nela penetrei. Tudo ali dava mostras do mais seIvagem tumulto e desordem. Reduzido grupo de homens, trajados com vestes semi-indianas, semi-européias, e dirigidos por oficiais de unifromes parcialmente britânico, lutava, com grande disparidade, contra a populaça que formigava nas avenidas. Juntei-me a esse grupo mais fraco, apossando-me das armas de um oficial caído, e pelejei sem saber contra quem, com a nervosa ferocidade do desespero. Breve fomos sobrepujados pelo número dos adversários e forçados a buscar refúgio numa espécie de quiosque. Ali fizemos barricadas e, pelo momento, ficamos a salvo. Por uma clarabóia,próxima ao cimo do quiosque, notei vasta multidão, furiosamennte agitada, que rodeava e assaltava um belo palácio, a cavaleiro do rio. Logo, de um janela superior desse edifício, desceu uma pessoa de aparência efeminada, por meio de uma corda feita com os turbantes de seus serviçais. Um bote estava a seu alcance e nele o indivíduo escapou para a margem oposta do rio.


E então novo intento se apossou de minha alma. Dirigi umas poucas palavras precipitadas, porém enérgicas, a meus companheiros e, tendo conseguido atrair alguns deles para o meu desígnio, fiz uma sortida desesperada do quiosque. Corremos por entre a multidão que o rodeava. A princípio, eles bateram em retirada, Tornaram a unir-se, houve uma luta louca, e retiraram-se de novo. Entretanto, tínhamos sido afastados do quiosque e nos perdemos e emaranhamos pelas ruas estreitas, de altos e imponentes edifícios, em cujos recessos o sol nunca fora capaz de brilhar. A canalha precipitou-se impetuosamente sobre nós, hostilizando-nos com suas lanças e oprimindo-nos com nuvens de flechas. Estas eram muito dignas de nota e se pareciam, em alguns pontos, com o cris dos malaios. Eram feitas à imitação do corpo de uma serpente rastejante e longas e negras, com uma ponta envenenada. Uma delas feriu-me na têmpora direita. Girei e caí. Um mal-estar instântaneo e terrível se apoderou de mim. Lutei. . . ofeguei. . . morri.


- O senhor agora - disse eu sorrindo - dificilmente persistirá em afirmar que toda a sua aventura não foi um sonho. Certamente não está habilitado a assegurar que está morto?


Quando eu disse estas palavras esperei, naturalmente, alguma saida brilhante de Bedloe, em resposta; mas, com espanto ele hesitou, tremeu, tornou-se terrivelmente pálido e permaneceu silencioso. Olhei para Templeton. Este sentara-se, hirto, na cadeira. Seus dentes matraqucavam e seus olhos como que saltavam das órbitas.

- Continue! - disse ele, afinal, roucamente, a Bedloe.

- Durante muitos minutos - continuou este último - meu único sentimento, minha única sensação, era a da treva e do aniquilamento, com a consciência da morte.

Afinal, um violento e súbito choque, como de eletricidade, pareceu atravessar-me a alma . Veio com ele a sensação da elasticidade e da luz. Esta última senti-a, não a vi. Num instante, como que me levantei do solo. Mas não possuía uma presença corpórea, visível, audível ou palpável. A multidão se fora. O tumulto cessara. A cidade estava em relativo repouso. Abaixo de mim jazia meu cadáver com a seta em minha têmpora e toda a cabeça grandemente intumescida e desfigurada. Mas todas essas coisas eu sentia, não via. Nada me despertava interesse. Mesmo o cadáver parecia uma coisa que não me dizia respeito. Não tinha vontade, mas parecia estar sendo forçado ao movímento e voejar levemente para fora da cidade, refazendo o atalho pelo qual entrara nela. Quando atingi aquele ponto da ravina da montanha em que encontrara a hiena, de novo experimentei um choque como de bateria galvânica; a sensação do peso, a da volição,a da subst6ancia voltaram. Tornei a ser meu eu primitivo e apressei ansiosamente os passos, de regresso; mas, o passado não perdeu a realidade, e, ainda agora, nem por um instante posso forças a mente a considerar isso como um sonho.- Não foi sonho - disse Templeton, com solenidade -, embora seja difícil dizer como o poderíamos denominar de outra forma. Suponhamos somente que a alma do homem de hoje está à beira de alguma estupenda descoberta psíquica.


Contentemo-nos com esta suposição. Quanto ao resto, tenho alguma explicação a dar. Aqui está um desenho a aquarela que eu deveria ter-lhe mostrado antes mas que um inexplicável sentimento de horror até agora me impedira de mostrar.Olhamos para o quadro que ele apresentava. Nada vi nele de extraordinário, mas seu efeito sobre Bedloe foi prodigioso. Quase desmaiou ao contemplá-lo. E contudo era apenas um retrato em miniatura - sem dúvida, um retrato maravilhosamente pormenorizado de sua própria fisionomia, tão notável. Pelo menos fora isso que eu pensara ao olhá-lo.


- O senhor notará - disse Templeton - a data desse quadro. Cá está, mal visível, neste canto: 1780. O retrato foi tirado nesse ano. É a fisionomia de um amigo morto, um Sr. Oldeb, com quem me tornei muito ligado em Calcutá, durante a administração de Warren Hastings. Então tinha eu somente vinte anos. Quando pela vez o vi, Sr. Bedloe. em Saratoga, foi a maravilhosa semelhança que existia entre o senhor e esta pintura que me induziu a buscar sua amizade e chegar a essas combinações que resultaram em tornar-me eu o seu constante companheiro. Ao realizar isso era eu impelido em parte, e talvez principalmente, pela recordação saudosa do morto, mas também, em parte, por uma inquietante curiosidade, não de todo destituída de terror com relação a sua pessoa.Em sua narrativa da visão que se lhe apresentou entre as colinas o senhor descreveu, com pormenorizada precisão, a cidade hindu de Benares, sobre o rio Sagrado. Os tumultos, o combate, o massacre foram os acontecimentos reais da insurreição de Cheyte Sing que ocorreu em 1870, quando Hastings correu iminente perigo de vida. O homem que fugiu pela corda de turbantes era o próprio Cheyte Sing. O grupo do quiosque era formado de Cipaios e de oficiais britânicos que Hastings chefiava. Eu fazia parte desse grupo e fiz tudo que pude para impedir a imprudente e fatal sortida do oficial que caiu, nas avenidas apinhadas, vitimado pela flecha envenenada de um bengali. Esse oficial era o meu amigo mais caro.


Era o Sr. Oldeb. O senhor notará por estes escritos que (e aí Dr. Templeton puxou um caderno de bolso no qual várias páginas pareciam estar estar escritas de fresco) no próprio período em que o senhor imaginava essas coisas, entre as colinas, eu me dedicava a pormenorizá-las no papel, aqui em casa.Cerca de uma semana depois desta conversação, os parágrafos seguintes apareceram num jornal de Charlottesville:


Cumprimos o doloroso dever de anunciar o falecimento do Sr. Augusto Bedlo, cavalheiro cujas maneiras amáveis e numerosas virtudes o haviam há muito tornado caro aos cidadãos de Charlottesville.

O Sr. Bedlo, desde há alguns anos, sofria de nevralgia que várias vezes ameaçou ter um desfecho fatal; mas isso só pode ser considerado causa mediata de sua morte. A causa imediata foi de particular singularidade. Numa excursão às Montanhas Fragotas, faz poucos dias, contraiu ele um leve resfriado, com febre, seguido de acumulo de sangue na cabeça. Para aliviá-lo, o Dr. Templeton recorreu à sangria tópica. Foram-lhe aplicadas bichas às têmporas. Num período terrivelmente breve o paciente faleceu verificando-se que no vaso que continha as bichas fora introduzida por acidente, uma das sanguessugas vermiculares venenosas que são de quando em quando encontradas nos pântanos vizinhos. Esse animal introduziu-se numa pequena artéria, na têmpora direita. Sua enorme semelhança com a sanguesuga medicinal fez com que o engano só fosse percebido tarde demais.


N. B. - A sanguessuga venenosa de Charlottesville pode ser sempre distinguida da sanguessuga medicinal por sua cor negra e especialmente , por seus movimentos ondulatórios ou vermicolares, que muito se assemelham aos de uma cobra.


Eu conversava com o editor do jornal em apreço sobre o assunto desse notável acidente, quando me ocorreu perguntar como acontecera que o nome do defunto fora grafado Bedlo.

- Presumo - disse eu - que o senhor tem alguma autoridade para escrevê-lo assim, mas sempre supus que o nome fosse com um e no fim.- Autoridade? Não! - replicou ele. - Foi um simples tipográfico. O nome é Bedloe, com e, no mundo inteiro, e nunca em minha vida soube que fosse escrito diferentemente.


- Então - murmurei, ao girar sobre os calcanhares - na realidade, bem pode ser que uma verdade seja mais estrannha que qualquer ficção, porque Bedloe, sem e, é apenas Oldeb de trás para diante. E esse homem vem-me dizer que é um erro tipográfico!

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