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by Reed Crandall |
O BARRIL DE AMONTILLADO (1)
(1) Publicado pela primeira vez no Godey's Lady's Book, novembro de 1846. Título
Original: The CASK OF AMONTILLADO.
Suportara eu, enquanto possível, as mil ofensas de Fortunato. Mas quando se
aventurou ele a insultar-me, jurei vingar-me. Vós, que tão bem conheceis a
natureza de minha alma, não havereis de supor, porém, que proferi alguma
ameaça. Afinal, deveria vingar-me. Isso era um ponto definitivamente assentado,
mas essa resolução, definitiva, excluia a idéia de risco. Eu devia não só punir, mas
punir com impunidade. Não se desagrava uma injúria quando o castigo cai sobre
o desagravante. O mesmo acontece quando o vingador deixa de fazer sentir sua
qualidade de vingador a quem o injuriou.
Fica logo entendido que nem por palavras nem por fatos dera causa a Fortunato
de duvidar de minha boa-vontade. Continuei, como de costume, a fazer-lhe cara
alegre, e ele não percebia que meu sorriso agora se originava da idéia de sua
imolação.
O Fortunato tinha o seu lado fraco, embora a outros respeitos fosse um homem
acatado e até temido. Orgulhava-se de ser conhecedor de vinhos. Poucos
italianos têm o verdadeiro espírito do "conhecedor". Na maior parte, seu
entusiasmo adapta-se às circunstâncias do momento e da oportunidade, para
ludibriar milionários ingleses e austríacos. Em matéria de pintura e ourivesaria era
Fortunato, a igual de seus patrícios, um impostor; mas em assuntos de vinhos
velhos era sincero. A este respeito éramos da mesma força. Considerava-me
muito entendido em vinhos italianos e sempre que podia, comprava-os em larga
escala.
Foi ao escurecer duma tarde, durante o supremo delírio carnavalesco, que
encontrei meu amigo. Abordou-me com excessivo ardor, pois já estava bastante
bebido. Estava fantasiado com um traje apertado e listado, trazendo na cabeça
uma carapuça cónica cheia de guizos. Tão contente fiquei ao vê-lo que quase não
largava de apertar-lhe a mão. E disse-lhe:
- Meu caro Fortunato, foi uma felicidade encontrá-lo ! Como está você bem
disposto hoje! Mas recebi uma pipa dum vinho, dado como amontillado, e tenho
minhas dúvidas.
- Como? disse ele. - Amontiliado? Uma pipa? Impossível. E no meio do carnaval!
- Tenho minhas dúvidas - repliquei -, mas fui bastante tolo para pagar o preço total
do amontillado sem antes consultar você. Não consegui encontrá-lo e tinha receio
de perder uma pechincha.
- Amontillado!
- Tenho minhas dúvidas.
- Amontillado!
- E preciso desfazê-las.
- Amontillado!
- Se você não estivesse ocupado. . . Estou indo à casa chesi. Se há alguém que
entenda disso, é ele. Haverá de dizer…
- Luchesi não sabe diferençar um amontillado dum xerex
- No entanto, há uns bobos que dizem por aí que, em matéria de vinhos, vocês se
equiparam.
- Pois então vamos.
- Para onde?
- Para sua adega.
- Não, meu amigo. Não quero abusar de sua boa-vontaa que você está ocupado.
Luchesi...
- Não estou ocupado, coisa nenhuma... Vamos.
- Não, meu amigo. Não é por isso, mas é que vejo está fortemente resfriado. A
adega está duma umidade intolerável. Suas paredes estão incrustadas de salitre.
- Não tem importância, vamos. Um resfriado à-toa. Amontillado! Acho que você foi
enganado. Quanto a Luchesi, é incapaz de distinguir um xerez dum amontillado.
Assim falando, Fortunato agarrou meu braço. Pondo no rosto uma máscara de
seda e enrolando-me num rocló, deixei-me levar por ele, às pressas, na direção
do meu palácio.
Todos os criados haviam saído para brincar no carnaval. Dissera-lhes que só
voltaria de madrugada e dera-lhes explícitas ordens para não se afastarem de
casa. Foi, porém, o bastante, sabia, para que se sumissem logo que virei as
costas.
Peguei dois archotes, um dos quais entreguei a Fortunato, e conduzi-o através
de várias salas até a passagem abobaddada que levava à adega. Desci à frente
dele uma longa e tortuosa escada, aconselhando-o a ter cuidado. Chegamos por
fim ao sopé e ficamos juntos no chão úmido das catacumbas dos Montresors.
Meu amigo cambaleava e os guizos de sua carapuça tilintavam a cada passo que
dava.
- Onde está a pipa? perguntou ele.
- Mais para o fundo - respondi -, mas repare nas teiias cistalinas que brilham nas
paredes desta caverna.
Ele voltou-se para mim e fitou-me bem nos olhos com auqueles seus dois
glóbulos vítreos que destilavam a reuma da bebedice.
- Salitre? - perguntou ele, por fim.
- E, sim - respondi. - Há quanto tempo está você com essa tosse?
- Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! Eh!... - pôs-se êle a tossir, e durante muitos minutos não
conseguiu meu pobre amigo dizer uma palavra.
Não é nada - disse ele, afinal.
- Venha - disse eu, decidido. Vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico,
respeitado, admirado, amado. Você é feliz como eu era outrora. Você é um homem
que faz falta. Quanto a mim, não. Voltaremos. Você pode piorar e não quero ser
responsável por isso. Além do quê, posso recorrer a Luchesi...
- Basta! - disse ele. - Essa tosse não vale nada. Não me há de matar. Não é de
tosse que hei de morrer.
- Isto é verdade… isto é verdade. . . - respondi - e, de fato, não era a minha
intenção alarmá-lo sem motivo. Mas acho que você devia tomar toda a precaução.
Um gole deste Médoc nos defenderá da umidade.
Então fiz saltar o gargalo duma garrafa que retirei duma longa pilhada no chão.
- Beba - disse eu, apresentando-lhe o vinho.
Levou a garrafa aos lábios, com um olhar malicioso. Calou-se um instante e me
cumprimentou com familiaridade, fazendo tilintar os guizos.
- Bebo pelos defuntos que repousam em torno de nós - disse ele.
- E eu para que você viva muito.
Pegou- me de novo no braço e prosseguimos.
- Estas adegas são enormes - disse ele.
- Os Montresors eram uma família rica e numerosa - respondi.
- Não me lembro quais são suas armas.
- Um enorme pé humano dourado em campo blau; o pé esmagando uma serpente
rastejante cujos colmilhos se lhe cravam no calcanhar.
- E qual é a divisa?
- Nemo me ímpune lacessit. (2) ((2) Niguém me ofende impunemente. (N. T.))
- Bonito! - disse ele.
O vinho faiscava-lhe nos olhos e os guizos tilintavam. Minha propria imaginação
se aquecia com o Médoc. Haviamos passado diante de paredes de ossos
empilhados, entre barris e pipotes, até os recessos extremos das catacumbas.
Parei de novo e desta vez e atrevi a pegar Fortunato por um braço acima do
cotovelo.
- O salitre! Veja, está aumentado. Parece musgo agarrado às paredes. Estamos
embaixo do leito do rio. As gotas de umidade filtram-se entre os ossos. Venha,
vamos antes que seja demasiado tarde… Sua tosse...
- Não é nada - disse ele. - Continuemos. Mas antes, dê-me outro gole de Médoc.
Quebreei o gargalo duma garrafa de De Grave e entreguei-lha.
Esvaziou-a dum trago. Seus olhos cintilavam, ardentes. Riu e jogou a garrafa para
cima, com um gesto que eu não compreendi.
Olhei surpreso para ele. Repetiu o grotesco movimento.
- Não compreende? - perguntou.
- Não.
- Então não pertence à irmandade?
- Que irmandade?
- Não é maçom?
- Sim, sim! - respondi. - Sim, sim!
- Você, maçom? Não é possível!
- Sou maçom, sim repliquei.
- Mostre o sinal - disse ele.
- É este - respondi. retirando de sob as dobras de meu rocló uma colher de
pedreiro.
- Você está brincando - exclamou ele, dando uns passos para trás. - Mas
vamos ver o amontillado .
- Pois vamos - disse eu, recolocando a colher debaixo do capote e
oferecendo-lhe , de novo, meu braço, sobre o qual se apoiou ele pesadamente.
Continuamos o caminho em busca do amontillado. Passamos por uma série de
baixas arcadas, demos voltas, seguimos para a frente, descemos de novo e
chegamos a uma profunda cripta, onde a impureza do ar reduzia a chama de
nossos archotes a brasas avermelhadas.
No recanto mais remoto da cripta, outra se descobria menos espaçosa. Nas suas
paredes alinhavam-se restos humanos empilhados até o alto da abóbada, à
maneira das grandes catacumbas de Paris. Três lados dessa cripta interior
estavam assim ornamentados. Do quarto, haviam sido afastados os ossos , que
jaziam misturados no chão, formando em certo ponto um montículo de avultado
tamanho. Na parede assim desguarnecida dos ossos, percebemos um outro
nicho, com cerca de um metro e vinte de profundidade, noventa centímetros de
largura e um metro e oitenta ou dois metros e dez de altura. não parecia ter sido
escavado para um uso especial, mas formado simplesmente pelo intervalo entre
dois dos colossais pilares do teto das catacombas, e tinha como fundo uma das
paredes, de sólido granito, que os circunscreviam.
Foi em vão que Fortunato, erguendo a tocha mortiça, tentou espreitar a
profundeza do recesso. A fraca luz não nos permitiu ver-lhe o fim.
- Vamos - disse eu -, aqui está o amontillado . Quanto a Luchesi...
- E um ignorantaço! - interrompeu meu amigo, enquanto caminhava, vacilante,
para diante e eu o acompanhava rente aos calcanhares. Sem demora, alcançou
ele a extremidade do nicho, e não podendo mais prosseguir, por causa da rocha,
ficou estúpidamente apatetado. Um momento mais e ei-lo acorrentado por mim ao
granito. Na sua superfície havia dois anéis de ferro, distando um do outro cerca
de sessenta centímetros, horizontalmente. De um deles pendia curta cadeia e do
outro um cadeado. Passei a corrente em torno da cintura e prendê-lo, bem seguro,
foi obra de minutos. Estava por demais atônito para resistir. Tirando a chave saí
do nicho.
- Passe sua mão - disse eu - por sobre a parede. Não deixar de sentir o salitre. É
de fato bastante úmido. Mais uma vez permita-me implorar-lhe que volte. Não?
Então devo positivamente deixá-lo. Mas é preciso primeiro prestar-lhe todas as
pequeninas atenções que puder.
- O amontillado ! - vociferou meu amigo, ainda não recobrado do espanto.
- É verdade - repliquei -, o amontillado .
Ao dizer estas palavras, pus-me a procurar as pilhas de ossos a que me referi
antes. Jogando-os para um lado, logo descobri grande quantidade de tijolos e
argamassa. Com estes e com o auxílio de minha colher de pedreiro comecei com
vigor, a emparedar a entrada do nicho.
Mal havia eu começado a acamar a primeira fila de tijolos, descobri que a
embriaguez de Fortunato tinha-se dissipado em grande parte. O primeiro indício
disto que tive foi um surdo lamento, lá do fundo do nicho.
Não era o choro de um homem embriagado. Seguiu, então, um longo e obstinado
silêncio. Deitei a segunda camada, a terceira e a quarta; e depois ouvi as furiosas
vibrações da corrente. O barulho durou vários minutos, durante os quais, para
maior satisfação, interrompi meu trabalho e me sentei em cima dos ossos.
Quando afinal o tilintar cessou, tornei a pegar e acabei sem interrupção a quinta, a
sexta e a sétima camada. A parede estava agora quase ao nível de meu peito.
Parei de novo e levantando o archote por cima dela, lancei uns poucos e fracos
raios sobre o rosto dentro do nicho.
Uma explosão de berros fortes e agudos, provindos da garganta do vulto
acorrentado, fez-me recuar com violência. Durante um breve momento hesitei.
Tremia. Desembainhando minha espada, comecei a apalpar com ela em torno do
nicho, mas uns instanntes de reflexão me tranquilizaram. Coloquei a mão sobre a
a alvenaria sólida das catacumbas e senti-me satisfeito. Reaproximei-me da
parede: Respondi aos urros do homem. Servi-lhe de eco, ajudei-o a gritar...
ultrapassei-o em volume e em força. Fui fazendo assim e por fim cessou o clamor.
Era agora meia-noite e meu serviço chegara a cabo. Completara a oitava, a nona e
a décima camadas. Tinha acabado uma porção desta última e a décima-primeira.
Faltava apenas uma pedra a ser colocada e argamassada. Carreguei-a com
dificuldade por causa do peso. Coloquei-a, em parte, na posição devida. Mas
então irrompeu de dentro do nicho uma enorme gargalhada que me fez eriçar os
cabelos. Seguiu-se-lhe uma voz lamentosa, que tive dificuldade de reconhecer
como a do nobre Fortunato. A voz dizia:
- Ah, ah, ah!... Eh, eh, eh! Uma troça bem boa de fato…uma excelente pilhéria!
Haveremos de rir a bandeiras despregadas lá no palácio... eh, eh, eh!... a respeito
desse vinho, eh! eh! eh!
- O amontillado ! - exclamei eu.
- Eh, eh, eh!... Eh, eh, eh!... Sim... o amonúlíado! já não será tarde? Já não estarão
esperando por nós no palácio? minha mulher e os outros? Vamos embora!
- Sim - disse eu. - Vamos embora.
- Pelo amor de Deus, Montresor!
- Sim - disse eu. - Pelo amor de Deus!
Aguardei debalde uma resposta a estas palavras. Impacientei-me. Chamei em voz
alta:
- Fortunato!
Nenhuma resposta. Chamei de novo:
- Fortunato!
Nenhuma resposta ainda. Lancei uma tocha através da abertura e e deixei-a cair lá
dentro. Como resposta ouvi apenas o tinir dos guizos. Senti um aperto no
coração. . devido talvez à umidade das catacumbas. Apressei-me em terminar
meu trabalho. Empurrei a última pedra em sua posição. Argamassei-a. Contra a
nova parede, reergui a velha muralha de ossos. Já faz meio século que mortal
algum os remexeu. In pace requiescat!
-nota: a expressão latina (in pace requiescat) não tem tradução, no texto.
Acredito (porque a ledora não domina o latim ) trata-se de alguma coisa como : descance em paz.
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