sexta-feira, 8 de agosto de 2008

O SEPULTAMENTO PREMATURO

O SEPULTAMENTO PREMATURO (1)


Há certos temas de interesse totalmente absorventes mas por demais horríveis para os fins da legítima ficção. O simples romancista deve evitá-los se não deseja ofender ou desgostar. Só devem ser convenientemente utilizados quando a severidade e a imponência da verdade os santificam e sustentam. Estremecemos, por exempIo, com o mais intenso "pesar agradável", diante das narrativas da Passagem do Beresina, do Terremoto de Lisboa, da preste Londres, do Massacre de São Bartolomeu, ou do asfixiamento de cento e vinte três prisioneiros da Caverna Negra em Calcutá. Mas, nessas narrativas é o fato, é a realidade, é a história o que excita. Como invenções, olhá-las-íamos com simples aversão.


-nota de rodapé: (1) Publicado pela primeira vez no Dollar Newspaper, 31 de julho de 1844. Título original: The PREMATURE BURIAL.- fim da nota de rodapé.


Mencionei algumas, apenas, das mais proeminentes e augustas calamidades que a história registra. Mas nelas existe a extensão, bem como o caráter, de calamidade, que tão vivamente impressiona a fantasia. Não é necessário lembrar ao leitor que, do longo e pavoroso catálogo das misérias humanas, poderia eu ter selecionado numerosos exemplos individuais mais repletos de sofrimento essencial que qualquer daqueles vastos desastres generalizados. A verdadeira desgraça, na verdade, o derradeiro infortúnio, é particular e não difuso. Demos graças a um Deus misericordioso pelo fato de serem os espantosos extremos da agonia suportados pelo homem-unidade e não pelo homem-massa!


Ser enterrado vivo é, fora de qualquer dúvida, o mais terrifico daqueles extremos que já couberam por sorte aos simples mortais. Que isso haja acontecido frequentemente, e bem freqúentemente, mal pode ser negado por aqueles que pensam. Os limites que separam a vida da Morte são, quando muito, sombrios e vagos. Quem poderá dizer onde uma acaba e a outra começa? Sabemos que há doença em que ocorre total cessação de todas as aparentes funções de vitalidade, mas, de fato, essas cessações são meras suspensões, propriamente ditas. Não passam de pausas temporárias no incompreensível mecanismo. Certo período decorre e alguns princípios misteriosos e invisíveis põem de novo em movimento os mágicos parafusos e as encantadas rodas. A corda de prata não estava solta para sempre, nem o globo de ouro irreparavelmente quebrado. Mas, entrementes, onde se achava a alma?


De parte, porém, a inevitável conclusão, a priori, de que causas tais devem produzir tais efeitos, de que a bem conhecida ocorrência de tais casos de interrompida animação deve, naturalmente, dar azo, em vez em quando, a enterros prematuros, de parte esta consideração temos o testemunho direto da experiência médica e da experiência comum a provar que grande número de semelhantes enterros se tem realmente realizado. Se fosse necessário, poderia re-ferir-me imediatamente a uma centena de casos bem autenticados. Um dos mais famosos, e cujas circunstâncias podem estar ainda frescas na memória de alguns de meus leitores, ocorreu, não faz muito, na vizinha cidade de Baltimore, onde causou uma excitação penosa, intensa e de vasto alcance. A esposa de um dos mais respeitáveis cidadãos, advogado eminente e membro do Congresso, foi atacada de súbita e estranha moléstia que zombou completamente do saber de seus médicos. Depois de muitos sofrimentos veio a falecer, ou supôs-se que houvesse falecido. Ninguém suspeitava, na verdade, nem tinha razão de suspeitar, que ela não estivesse realmente morta. Apresentava todos os sinais habituais de morte. O rosto tomara o usual contorno cadavérico. Os lábios tinham a habitual palidez marmórea. Os olhos estavam sem brilho. Não havia calor. A pulsação cessara. Durante três dias o corpo foi conservado insepulto, adquirindo então uma rigidez de pedra. Afinal, o enterro foi apressado, por causa do rápido avanço do que se supunha ser a decomposição.


A mulher fora depositada no jazigo da família, que não fora aberto nos três anos subsequentes. Ao expirar esse prazo, abriram-no para receber um ataúde; mas, ai!, que pavoroso choque esperava o marido que abrira - em pessoa a porta. Ao se escancararem os portais, certo objeto branco caiu-lhe ruidosamente nos braços. Era o esqueleto de sua mulher, ainda com a mortalha intata.


Cuidadosa investigação tornou evidente que ela recuperara a vida dois dias depois de seu enterramento; que sua luta dentro do ataúde fizera-o cair de uma saliência ou prateleira, no chão, onde se quebrara, permitindo-lhe escapar. Uma lâmpada que fora, deixada cheia de óleo dentro do jazigo foi encontrada vazia; contudo, poderia ter sido esgotada pela evaporação. No alto dos degraus que levavam à câmara mortuária, havia um grande fragmento do caixão, com o qual, parecia, tinha ela tentado chamar a atenção batendo na porta de ferro. Enquanto assim fazia, provavelmente desfaleceu ou possivelmente morreu tomada de terror ao cair, sua mortalha ficou presa a algum pedaço de ferro no interior. E assim ela permaneceu e assim apodreceu, erecta.


No ano de 1810, um caso de inumação viva aconteceu na França, cercado de circunstâncias que provam plenamente a afirmativa de que a verdade é, de fato, mais estranha do que a ficção . A heroina da estória era Mademoiselle Vitorina Lafourcade, moça de ilustre família, rica e de grande beleza pessoal. Entre seus numerosos pretendentes havia um tal Julien Bossuet, pobre literato ou jornalista de Paris. Seu talento e sua amabilidade tinham atraido a atenção da herdeira, por quem parecia ter sido verdadeiramente amado; mas o orgulho de seu nascimento decidiu-a, por repeli-lo e a casar-se com um certo Monsieur Renelle, banqueiro e diplomata de certa importância. Depois do casamento, porém esse cavalheiro a desprezou e, talvez mesmo mais positivamente, maltratou-a. Tendo passado a seu lado alguns anos infelizes, ela morreu; pelo menos, seu aspecto se assemelhava tão de perto a morte que enganava a qualquer que a visse. Foi enterrada, não zigo, mas num sepulcro comum, na vila onde nascera. Cheio de desespero e ainda inflamado pela lembrança de sua profuncda afeição , o apaixonado viajou da capital para a longínqua província em que se achava a aldeia, no romântico propósito de desenterrar o cadáver e apossar-se de suas fartas madeixas. Chegou ao túmulo. À meia-noite desenterrou o caixão, abriu-o e, ao cortar-lheo, foi detido pelos olhos abertos de sua amada. De fato, a mulher tinha sido enterrada viva. A vitalidade ainda não desaparecera de todo e ela foi despertada pelas carícias de seu amado do letargo que fora tomado como morte. Ele a levou, nervosamente, aos seus aposentos na aldeia. Empregou certos poderosos analépticos sugeridos por seus não pequenos conhecimentos médicos. Por fim, ela reviveu. Reconheceu seu salvador. Permaneceu com ele até que, gradativamente, recobrou por completo, a primitiva saúde. Seu coração de mulher não tinha a dureza dos diamantes e essa última lição de amor bastou para abrandá-lo. Concedeu-o a Bossuet. Não voltou à companhia do marido; mas, ocultando dele a sua ressureição , fugiu com seu amante para a América. Vinte anos depois, ambos voltaram à França, persuadidos de que o tempo tinha alterado tão grandemente o aspecto da mulher que seus amigos seriam incapazes de reconhecê-la. Enganaram-se, porém. porque, ao primeiro encontro, Monsieur Renelle reconheceu logo e reclamou sua mulher. Ela se opôs a essa reclamação e um tribunal de justiça apoiou-a, decidindo que as circunstâncias peculiares e o lapso de anos haviam extinguido, não só equitativa, mas legalmente a autoridade do marido.


O Jornal de Cirurgia de Lipsia, periódico de alta autoridade e mérito, que alguns livreiros americanos fariam bem em traduzir e republicar, relembra num dos últimos números um acontecimento bem penoso dessa mesma espécie.Um oficial de artilharia, homem de gigantesca estatura e vigorosa saúde, tendo sido atirado de um cavalo indomável, recebeu fortíssima contusão na cabeça que o tornou imediatamente insensível. O crânio ficou levemente fraturado, mas não se temia imediato perigo. A trepanação foi executada com pleno êxito. Sangraram-no e puseram-se em execução vários outros meios comuns de alívio. Gradualmente, porém, foi ele mergulhando, cada vez mais, num estado de desesperado torpor e, finalmente, pensou-se que havia morrido.


O tempo era de calor, e enterraram-no, com pressa censurável, num dos cemitérios públicos. Seu enterro realizou-se na quinta feira. No domingo seguinte o cemitério, como de costume, encheu-se de visitantes e, ao meio-dia, produziu-se intensa excitação quando um camponês declarou que, tendo-se sentado sobre o túmulo do oficial, sentira distintamente um movimento da terra, como se ocasionado por alguém que lutasse ali embaixo. A princípio, pouca atenção foi dada à afirmativa do homem, mas seu evidente terror e a afirmativa obstinada com que persistia em sua estória produziram afinal, natural efeito sobre a multidão. Procuraram-se, às pressas pás, e o túmulo, que era vergonhosamente pouco profundo, foi em poucos minutos tão depressa escavado que a cabeça do seu ocupante apareceu; ele estava, então, aparentemente morto, mas sentara-se quase erecto dentro do caixão cuja tampa, na sua luta furiosa havia parcialmente soerguido.


Foi imediatamente transportado ao mais próximo declarou-se que ele estava ainda vivo, embora em estado de asfixia. Depois de algumas horas, reviveu, reconheceu pessoas de sua amizade e, em frases entrecortadas, narrou as agonias que sofrera na sepultura.


Pelo que ele relatou ficou patente que devera ter estado consciente de perder os sentidos. A sepultura fora descuidada e frouxamente cheia de uma terra excessivamente porosa, e assim, algum ar podia, necessariamente, penetrar. Ele ouviu o tropel de passos da multidão por cima de sua cabeça e procurou fazer-se ouvir por sua vez. Foi o barulho dentro do cemitério, disse ele, que pareceudespertá-lo de um profundo sono, mas logo que despertou sentiu-se cônscio do horror pavoroso de sua situação.


Este paciente, conta-se, estava indo bem e parecia achar-se em franco caminho de completo restabelecimento, mas foi vítima do charlatanismo das experiências médicas. Aplicaram-lhe uma bateria elétrica , de repente, expirou num daqueles extáticos paroxismos que ela ocasionalmente provoca.


A mensão da bateria elétrica, aliás, traz-me à memória um caso bem conhecido e extraordinário, em que sua ação provou-se eficaz em fazer voltar à vida um jovem procurador londrino que estivera enterrado durante oito dias. Isto ocorreu em 1831, e causou, em seu tempo, profundíssima sensação, em toda a parte em que se tornasse o assunto da conversa.



O paciente, Sr. Eduardo Stapleton, tinha morrido, parece, de tifo, com seus sintomas anômalos que haviam excitado a curiosidade de seus médicos assistentes. A respeito dessa morte aparente, solicitou-se de seus amigos que permitissem um exame post-mortem mas eles se negaram a consentir nisso. Como acontece muitas vezes quando se fazem tais recusas, os profissionais resolveram desenterrar o corpo e dissecá-lo, com vagar, por sua conta. Realizaram-se facilmente os preparativos, com os numerosos grupos de desenterradores de cadáveres, então muito encontradiços em Londres, e, na terceira noite depois do funeral, o suposto cadáver foi desenterrado de uma cova de dois metros e quarenta de profundidade e depositado na sala de operações de um dos hospitais particulares.


Uma incisão de certo tamanho fora já feita no abdômen, quando a aparencia fresca e incorrupta do paciente sugeriu que se fizesse aplicação duma bateria. As experiências se sucederam e sobrevieram costumeiros, sem nada que, de algum modo, os caracterizasse exceto, numa ou duas ocasiões, certo grau um pouco incomum de vivacidade na ação convulsiva.


Fazia- se tarde. O dia estava prestes a raiar e achou-se, afinal, que era conveniente proceder, sem demora, à dissecação. Um estudante, porém, estava especialmente desejoso de provar certa teoria sua e insistiu em que se aplicasse a bateria num dos músculos peitorais. Deu-se um grosseiro talho e aplicou-se apressadamente o fio; então o paciente. num movimento ligeiro, mas não convul-sivo , ergueu-se da mesa, andou até o meio do soalho, olhou inquieto antes em redor de si e depois. . . falou. Não se podia entender o que dizia, mas as palavras eram ditas e as formação das distinta. Depois de falar, caiu pesadamente no soalho.

Por alguns instantes todos ficaram paralisados de terror, mas aurgencia do caso em breve os fez recuperar a presença de espírito. Via-se que o Sr. Stapleton estava vivo, embora desmaiado. Com aplicação de éter reviveu, e, sem demora, recuperou a saúde, voltou convívio de seus amigos, dos quais, porém, todo conhecimento de sua ressurreição fora oculto, até passar o perigo de uma recaída. Podem imaginar-se sua admiração e seu arrebatador espanto.


A mais emocionante particularidade desse incidente, contudo, consiste no que o próprio Sr. Stapleton afirma. Declara ele que em nenhuma ocasião esteve totalmente insensível; que vaga e confusamente tinha consciência de tudo quanto lhe acontecia, desde o momento em que foi declarado morto pelos médicos, até aquele em que desmaiou no soalho do hospital. "Eu estou vivo " foram as palavras incompreendidas que, ao reconhecer que se achava na sala de dissecação, tinha tentado pronunciar, naquela hora extrema.


Seria coisa fácil multiplicar estórias como esta, mas abstenho-me disso porque, na verdade, não temos necessidade de tal coisa para demonstrar que, efetivamente, ocorrem enterramento prematuros. Quando refletimos, dada a natureza do caso, quão raramente nos é possível descobri-los, devemos admitir que eles possam ocorrer frequentemenre sem que o saibamos. É raro, na verdade que um cemitério seja revolvido, alguma vez, com qualquer grande extensão, e não se encontrem esqueletos em posições que sugerem as mais terríveis suspeitas.


Terrível, na verdade, a suspeita, porém mais terrível é tal destino! Podemos asseverar, sem hesitação, que nenhum acontecimento é tão horrivelmente capaz de inspirar o supremo desespero do corpo e do espírito como ser enterrado vivo. A insuportável opressão dos pulmões, os vapores sufocantes da terra úmida, o contato nos ornamentos fúnebres, o rígido aperto das tábuas do caixão, o negror da noite absoluta, o silêncio como um mar que nos afoga, a invisível, porém sensível, presença do Verme Conquistador, tudo isso com a idéia do ar e da relva lá em cima, a lembrança dos amigos que voariam a salvar-nos se informados de nosso destino e a consciência de que eles jamais poderão ser informados deste destino, e de que nossa desesperada sorte é a do realmente morto, essas considerações, digo, acarretam ao coração que ainda palpita um grau tal de horror espantoso e intolerável que a mais ousada imaginação recua diante dele.



Nada conhecemos de mais agonizante sobre a terra. Não podemos imaginar nem a metade de coisa tão horrível nas regiões do mais profundo inferno. E, por isso, qualquer narrativa a respeito tem interesse profundo; interesse, porém, que através do sagrado terror do próprio assunto, bem própria e caracteristicamente depende de nossa convicção da verdade do caso narrado. O que tenho agora a contar é do meu real conhecimento, da minha própria, positiva e pessoal experiência.


Durante vários anos estive sujeito a ataques da estranha moléstia que os médicos acordaram em chamar catalepsia, na falta de denominação mais definida. Embora tanto as causas imediatas e pre-disponentes como o verdadeiro diagnóstico desta doença ainda sejam misteriosos, seu caráter claro e evidente já está bastante compreendido. Suas variações parecem ser, principalmente, de grau. As vezes, o paciente jaz, durante um dia só, ou mesmo durante um curto período, numa espécie de exagerada letargia. Perde a sensibilidade e os movimentos, mas a pulsação do coração é fracamente perceptível; alguns restos de calor permanecem; ligeiro colorido semantém no centro da face; e, aplicando um espelho à boca, pode-se descobrir uma lenta, desigual e vacilante ação dos pulmões. Outras vezes a duração do transe é de semanas ou mesmo de meses, e a mais severa investigação, as mais rigorosas experiências médicas não conseguem estabelecer qualquer distinção material entre o estado do paciente e o que concebemos como morte absoluta.Frequentes vezes é ele salvo do enterramento prematuro apenas por saberem seus amigos que fora anteriormente sujeito a ataques catalépticos, pela consequente suspeita suscitada e, acima de tudo, pela aparência de incorrupção. Os progressos da doença são, feliz gradativos. As primeiras manifestações, além de típicas, são inequivocas.



Os acessos se tornam, sucessivamente, cada vez mais distintos, prolongando-se cada um mais do que o anterior. Nisto faz a principal garantia contra a inumação. O infeliz cujo primeiro ataque for de caráter extremo, como ocasionalmente se vê, estará quase sem remédio condenado a ser enterrado vivo.


Meu próprio caso não diferia, em pormenores importantes, dos mencionados nos livros médicos. As vezes, sem nenhuma causa aparente, eu mergulhava, pouco a pouco, num estado de semi-síncope, ou semidesmaio; e neste estado, sem dor, sem possibilidade de mover-me ou, estritamente falando, de pensar, mas com uma nevoenta e letárgica consciência da vida e da presença dos que ceercavam minha cama, eu permanecia até que a crise da doença me fizesse recuperar, de súbito, a completa sensação. Outras vezes, era rapida e impetuosamente surpreendido pelo ataque. Sentia-me doente, entorpecido, frio, aturdido e caía logo prostrado. Depois durante semanas, tudo era vacuo, negror, silêncio, e num nada se transformava o universo. Não poderia haver mais total aniquilação. Destes últimos ataques eu despertava, porém, com lentidão gradativa na proporção da subitaneidade do acesso. Da mesma forma por que o dia alvorece para o mendigo, sem lar e sem amigos, que vaga pelas ruas, através da longa e desolada noite de inverno, assim também tardia, assim também cansada, assim também alegre, voltava a luz à minha alma.


Exceto aquela predisposição para o ataque, meu estado geral de saúde apresentava-se bom; nem mesmo eu podia perceber que todo ele se achava afetado por uma doença predominante, a menos que, realmente, certa reação em meu sono comum pudesse ser olhada como um sintoma. Logo ao despertar, nunca podia de imediato assenhorear-me de meus sentidos e sempre permanecia, durante muitos minutos, em grande confusão e perplexidade, com as faculdades mentais em geral, e especialmente a memória. num estado de absoluta vaguidão.


Em tudo isso que eu experimentava não havia sofrimento físico, mas infinita a angústia moral. Minha imaginação se tornava macabra. Falava de "vermes, de covas e epitáfios". Perdia-me em devaneios de morte e a idéia do enterramento prematuro se apossava de contínuo de meu cérebro. O horrendo Perigo a que estava sujeito, assombrava-me dia e noite. De dia, a tortura da meditaçãoera excessiva; de noite, suprema. Quando a disforme escuridão inudava a terra, com todo o horror do pensamento eu tremia, tremia como as plumas palpitantes que adornam os carros fúnebres. Quando a natureza não podia mais suportar a insônia, era com relutância que eu consentia em dormir, pois me abalava o pensar que ao despertar, poderia achar-me como habitante de um túmulo. E quando, finalmente, mergulhava no sono, era apenas para precipitar-me imediatamente num mundo de fantasmas acima do qual com asas enormes, lúridas, tenebrosas, pairava, dominadora, Idéia sepulcral.


Das inúmeras imagens de tristeza que assim me oprimiam em sonhos escolho, para ilustrar, apenas uma visão solitária. Creio que estava imerso num transe cataléptico de duração e intensidade maiores que as habituais. De repente, senti uma mão gelada pousar-se na minha fronte e uma voz, impaciente e inarticulada, sussurou-me ao ouvido a palavra: "Levanta-te!"
Sentei-me. A escuridão era total. Não podia distinguir o vulto de quem me havia despertado. Não podia recordar-me do momento em que caíra em transe, nem do lugar em que então jazia, enquanto permanecia parado, ocupado em procurar coordenar o pensamento, a fria mão agarrou-me, feroz, pelo punho, sacudindo-o com aspereza, ao mesmo tempo em que a voz inarticulada dizia normalmente:Levanta-te! Não te ordenei que te levantasses? Quem és tu? - perguntei.


- Não tenho nome nas regiões onde habito - respondeu a voz, funebremente. - Eu era mortal, mas sou agora demônio. Eu era implacável, mas agora sou compassivo. Deves sentir que tremendo. Meus dentes matraqueiam enquanto falo, embora não seja por causa da frialdade da noite, da noite sem fim. Essa hediondez, porém, é insuportável. Como podes tu dormir tranqúilo? Não posso repousar por causa do clamor dessas grandes agonias. Esse espetáculo é superior às minhas forças. Póe-te de pé! Sai comigo para a noite e deixa que eu te escancare os túmulos. Não é esta uma visão de horror? Contempla!


Olhei, e o vulto invisível que ainda me agarrava pelo punho, fez com que se abrissem todos os túmulos da humanidade, e de cada um saiu o fraco palor fosfórico da podridão; e então eu pude ver, dentro dos mais absconsos recessos, pude ver os corpos amortalhados nos seus tristes e solenes sonos com o verme. Mas, ai! Os que dormiam verdadeiramente eram muitos milhões menos do que aqueles que não dormiam absolutamente; e debatiam-se, sem força; havia uma agitação geral e confrangedora; e das profundezas das covas incontáveis se elevava o ruído roçagante e melancólicos das mortalhas dos sepultos. E entre aqueles que pareciam ltranquilamente repousar vi que grande número havia mudado, em maior ou menor proporção, a rígida e incômoda posição em que haviam sido primitivamente enterrados. E a voz de novo me disse, enquanto eu contemplava:


Não é isto, oh!, não é isto uma visão lastimável? Mas antes que eu pudesse encontrar palavras para replicar, o vulto largou-me o punho, as luzes fosfóricas se extinguiram e as tumbas se fecharam com súbita violência, enquanto delas se erguia um tumulto de clamores desesperados: e ele disse de novo: " Não é isso, meu Deus!, não é isto uma visão lastimável?"Fantasias como estas que se apresentavam à noite estendiam sua terrífica influência muito além de minhas horas de vigília. Meus nervos se relaxaram inteiramente e me tornei presa de perpétuo horror. Hesitava em cavalgar, em passear ou em praticar exercício que me afastasse de casa. Na realidade, não ousava afastar-me da imediata presença daqueles que sabiam de minha propensão à catalepsia, temendo que, ao cair num de meus custumeiros ataques, viesse a ser enterrado antes de que minha verdadeira condição fosse certificada. Duvidava do cuidado, da fidelidade de meus mais queridos amigos. Receava que, em algum transe de maior duração que a habitual, fossem eles induzidos a considerá-lo como definitivo. Eu mesmo cheguei a ponto de temer por causar muito incômodo, ficassem eles satisfeitos em considerar qualquer ataque muito demorado como suficiente excusa para se verem livres de mim de uma vez por todas. Era em vão que eles procuravam tranquilizar-me com as mais solenes promessas, mais sagrados juramentos de que em nenhuma cirsunstância eles me enterrariam sem que a decomposição estivesse materialmente adiantada, que se tornasse impossível qualquer ulterior preservação. E mesmo assim meus terrores mortais não queriam dar ouvidos à razão, não queriam aceitar consolo.


Iniciei uma série de cuídadosas precauções. Entre outras coisas, mandei remodelar o jazigo da família, de modo a facilitar o ser prontamente aberto de dentro. A mais leve pressão sobre uma comprida manivela que avançava bem dentro do túmulo, causaria a abertura dos portais de ferro. Havia também dispositivos para a livre admisão de ar e da luz e adequados recipientes para comida e água, dentro do imediato alcance do caixão preparado para receber-me. O caixão estava quente e maciamente acolchoado e provido de tampa construída de acordo com o sistema da porta do jazigo, com o acréscimo de molas tão engenhosas que o mais fraco movimento do corpo seria suficiente para abri-lo .


Além de tudo isto, havia suspenso do teto do túmulo, um grande sino, cuja corda, como determinei, deveria ser enfiada por um buraco do caixão e amarrada a uma das mãos do cadáver. Mas, ah!, de que vale a vigilância contra o Destino do homem? Nem mesmo aquelas tão engenhosas seguranças bastaram para salvar das extremas agonias de ser enterrado vivo um desgraçado condenado de antemão a essas mesmas agonias!


Chegou uma época - como muitas vezes havia chegado antes - em que me achei emergindo de total inconsciência para o início de um fraco e indefinido senso da existência. Vagarosamente. Numa gradação tardígrada, aproximou-se a nevoenta madrugada do dia psicológico. Um torpor incômodo. Um sofrimento apático de obscura dor. Nenhuma atenção, nenhuma esperança, nenhum esforço. Em seguida, após longo intervalo, um zumbido nos ouvidos; depois disso, após um lapso de tempo ainda mais longo, uma comichão ou sensação de formigueiro nas extremidades; depois, um período aparentemente eterno de aprazível quietude, durante o qual sentimentos despertos lutam dentro do pensamento; depois, um breve e novo mergulho no nada; depois, uma súbità revivescência. Afinal o rápido tremer de uma pálpebra, e, imediatamente após, um choque elétrico do terror, mortal e indefinido, que arroja o sangue em torrentes das têmporas para o coração. E agora, o primeiro positivo esforço para pensar. E agora, a primeira tentativa de recordar. E agora, um êxito parcial e evanescente. E agora, a memoria já recuperou de tal modo seu domínio que, até certa medida consciente de meu estado. Sinto que não estou despertando de um sono comum. Lembro-me de que estive sujeito à catalepsia. E agora afinal, como que inundado por um oceano, meu espírito trêmulo é dominado pelo Perigo horrendo, por aquela espectral e tirânica idéia fixa.


Permaneci imóvel alguns minutos, depois que essa imagem se apoderou de mim. E por quê? Eu não podia armar-me de coragem para mover-me. Não ousava fazer o esforço necessário para certificar-me de minha sorte, é, contudo, havia algo no meu coração que me sussurrava que ela era fatal. O desespero - como de nenhuma outra desgraça que jamais salteou o ser humano - só o desespero me impeliu, após longa irresolução, a erguer das pálpebras de meus olhos. Ergui-as. Estava escuro, totalmente escuro. Senti que o ataque tinha passado. Senti que a minha doença há muito desaparecera. Senti que me achava agora completamente, em pleno uso de minhas faculdades visuais. E contudo, estava escuro, totalmente escuro, daquela escuridão intensa e extrema da Noite que dura para sempre.


Tentei gritar, e meus lábios e minha língua seca moveram-se convulsivamente, em comum tentativa, mas nenhuma voz saiu dos cavernosos pulmões, que, como oprimidos sob o peso de esmagadora montanha, arfavam e palpitavam com o coração a cada trabalhosa e penosa respiração.


O movimento das mandíbulas, no esforço de gritar bem mostrava-me que elas estavam amarradas, como se faz usualmente com os mortos. Senti também que jazia sobre alguma coisa sólida e que a mesma coisa também me comprimia estreitamente em ambos os lados. Até então eu não me atrevera a mover qualquer dos membros; mas agora, violentamente, levantei os braços que tinham estado até então sobre o peito, com as mãos cruzadas. Eles bateram de encontro a uma madeira sólida, que se estendia sobre uma altura de não mais do que seis polegadas de meu rosto. Não podia mais duvidar de que repousava dentro de um caixão.

E então, entre todas as minhas infinitas aflições, senti aproximar-se suavemente o anjo da Esperança, pois pensei nas precauções que havia tomado. Retorci-me e fiz esforços espasmódicos para abrir a tampa: não se movia. Tateei os punhos à procura da corda do sino: não foi encontrada. E então o anjo confortador voou para sempre e um desespero ainda mais agudo reinou triunfante, porque clara se tornava a ausência das almofadas que eu tinha tão cuidadosamente preparado, e depois, também, chegou-me sùbitamente às narinas o forte e característico odor da terra úmida. A conclusão era irresistível. Eu não estava dentro do jazigo. Fora vítima de um de meus ataques enquanto me achava fora de casa e então alguns estranhos, quando ou como não me podia recordar, me enterraram como a um cachorro, trancado dentro dum caixão e lançado no fundo, bem no fundo e para sempre, de alguma ordinária e sem nome.


Quando essa terrível convicção se fixou à força nos recessos mais íntimos de minha alma, esforcei-me mais uma vez por gritar bem alto. E essa segunda tentativa deu resultado. Um longo, selvagem e contínuo grito, ou bramido de agonia, ressoou através dos domínios da Noite subterrânea.Eei! Ei! Olha aqui! - respondeu uma voz grosseira.
- Que diabo é isso agora? - disse um segundo.
- Acabe com isso! - gritou um terceiro.
- Que pretende você berrando desse jeito, como um danado? - disse um quarto.E nisso fui agarrado e sacudido sem cerimônia durante muitos minutos por uma turma de sujeitos mal-encarados. Não me despertaram do meu sono, porque eu estava bem desperto quando gritei mas me fizeram recobrar a plena posse de minha memória.

Essa aventura ocorreu perto de Richmond, na Virgínia. Acompanhado por um amigo que eu tinha avançado, seguindo uma expedição de caça, algumas milhas ao longo das margens do rio Jaime. A noite se aproximou e fomos surpreendidos por uma tempestade. O camarote duma pequena chalupa, ancorada no rio e carregada de terra pastosa para jardim, oferecia-se como o único abrigo disponível. Arranjamo-nos o melhor que pudemos para passar a noite a bordo. Adormeci em um dos dois únicos beliches da embarcação.


Os beliches duma chalupa de sessenta ou setenta toneladas quase não precisam ser descritos. Aquele que eu ocupava não tinha colchão de espécie alguma. Sua largura extrema era de dezoito polegadas. A distância até o tombadilho, por cima da cabeça, era precisamente a mesma. Fora com excessiva dificuldade que me apertara dentro dele. Apesar de tudo, adormeci profundamente, e toda aquela minha visão, porque não era sonho, nem pesadelo. surgiu naturalmente das circunstâncias de minha posição, do meu habitual pensamento impressionado e da dificuldade, a que já aludi, de recuperar os sentidos e especialmente a memória durante muito tempo depois de despertar de um sono. Os homens que me sacudiram eram da tripulação da chalupa e alguns trabalhadores contratados para descarregá-la. Da própria carga é que provinha aquele cheiro de terra. A ligadura em torno de meus queixos era um lenço de seda em que havia enrolado minha cabeça, na falta de meu custumeiro barrete de dormir.

As torturas experimentadas, porém, eram, sem dúvida, completamente idênticas, no momento, às duma verdadeira sepultura, eram pavorosas, eram inconcebivelmente hediondas. Mas do Mal se origina o Bem, porque aqueles paroxismos operaram inevitavelmente revulsão no meu espírito. Minha alma adquiriu tonalidade, têmpera. Viajei para o estrangeiro. Fiz vigorosos exercícios. Aspirei o ar livre do Céu. Pensei em outras coisas que não na morte. Descartei-me de meus livros de medicina. Queimei Buchan (2) , não li mais os Pensamentos Noturnos, nem aranzéis a respeito de cemitérios, nem estórias de fantasmas como esta. Em resumo, tornei-me um novo homem e vivi vida de homem. Desde aquela memorável noite afugentei para sempre minhas apreensões sepulcrais e com elas esvaneceu-se a doença cataléptica, da qual, talvez, tivesem sido menos a consequência que a causa.


Há momentos em que, mesmo aos olhos serenos da razão, o mundo de nossa triste Humanidade pode assumir o aspecto de um inferno, mas a imaginação do homem não é Carathis para explorar impunemente todas as suas cavernas. Ah! A horrenda região dos terrores sepulcrais não pode ser olhada de modo tão completamente fantástico, mas, como os Demônios em cuja companhia Afrasiab fez sua viagem até o Oxus, eles devem dormir ou nos devorarão, devem ser mergulhados no sono ou nós pereceremos.
- nota de rodapé: (2) Guilherme Buchan (1729-1805), médico escocês, autor duma muito conhecida e difundida Medicina Doméstica e de Connservador das Mães e das Criançcas. (N.T.)
- fim da nota de rodapé.

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