TRÊS DOMINGOS NUMA SEMANA (1)
" Seu cabeça-dura, seu estúpido, seu teimoso, bronco, casquento, mofento e bolorento, seu velho selvagem!" - dizia eu (imaginariamente) uma tarde a meu tio- avô Rumgudgeon, agitando o punho contra ele (em imaginação). Somente em imaginação. O fato é que alguma trivial discordância existia justamente, naquela época, entre o que eu dizia e o que não tinha coragem de dizer, entre o que eu fazia e entre a metade do que eu pensava fazer.
Quando abri a porta do salão, avistei o velho porco-marinho sentado, com os pés em cima da prateleira do fogão, com um copázio de vinho do Porto na pata, fazendo esforços tenazes para realizar o que diz a canção: Remplis ton verre vide! Vide ton verre plein!(2)
- Meu querido tio, - disse eu, fechando a porta amavelmente e aproximando-me dele com o mais doce dos sorrisos -, o senhor sempre foi tão bondoso e atencioso, demonstrando sua benevolência por tantos, tantos modos, que... que acho que basta apenas sugerir-lhe uma vez mais, este pequeno ponto, para ter certeza de seu pleno assentimento.
- Hein!- disse ele. - Prossiga, meu bom rapaz!
- Estou certo, meu queridíssimo tio, (seu maldito velhaco), de que o senhor não tenciona realmente, seriamente, opor-se a meu
(1) Publicado pela primeira vez no Saturday Evening Post, 27 de novembro de 1841. Título original: A SUCCESSION OF SUNDAYS.
(2) Enche teu copo vazio / Esvazia o copo cheio! (N. T.)
casamento com Catarina. Isto não passa de uma brincadeira sua… eu sei.... Ah, ah, ah! Como o senhor é engraçadisso às vezes!
- Ah, ah, ah! - disse o velho. - Diabos te levem… sim !
- Decerto, sem dúvida! Eu sabia que o senhor estava brincando! Ora, meu tio, tudo quanto Catarina e eu desejamos é que o senhor nos faça o obséquio de nos dar uma opinião.. a respeita do tempo... o senhor sabe, meu tio... em resumo, quando seria mais conveniente para o senhor que o casamento... se… se… se realizasse, não é?
- Dê o fora, seu maroto! Que quer você dizer com isso? O melhor da festa é esperar por ela!
- Ah, ah, ah! Eh, eh, eh! Ih, ih, ih! Oh, oh, oh! Uh! uh, uh! essa é muito boa! É excelente ! É fina. Mas tudo quanto desejamos, justamente agora, é que o senhor indique precisamente a data.
- Ah! Precisamente?
- Sim, meu tio. Isto é, a data que mais agradasse o senhor.
- Não haveria resposta se eu tivesse de deixar isso a vontade não é, Bobby? Uma data qualquer dentro de um ano, por exemplo? Mas eu tenho que marcar precisamente?
- Se quiser ter a bondade, meu tio, a data certa.
- Pois então, Bobby, meu rapaz... Você é um bom sujeito não é? Desde que você quer a data certa, eu... eu vou lhe fazer logo esse favor.
- Querido tio!
- Psiu! - fez ele, afogando-me a voz. - Vou fazer-lhe logo esse favor. Você terá meu consentimento... e a bolada(3) , não podemos esquecer a bolada... Vejamos!
Quando será? Hoje é domingo, não é? Bem, então... vocês se casarão precisamente, veja bem! - quando se juntarem três domingos em uma mesma semana. Está-me ouvindo, moço? Por que está ai de boca aberta? Estou dizendo que você terá Catarina e a bolada dela quando se juntarem três domingos numa semana. Mas, enquanto não acontecer isso - meu jovem mandrião - enquanto não acontecer isso, você não terá nada, nem que eu morra! Você me conhece, sou um homem de palavra. E agora... rua!
E aí tragou seu copázio de vinho do Pôrto, enquanto eu saia correndo, desesperado, da sala.
Um "completo e distinto velho nobre inglês" era meu tio-avô Rumgudgeon, mas, diferentemente do da canção, tinha pontos fracos. Era um sujeito pequeno, obeso, aparatoso e ranzinzamente teimoso, de nariz vermelho, cérebro espesso, bolsa recheada, e um forte sentimento de sua própria importância. Com o melhor coração do mundo procurava, por meio de uma predominante mania de contradição , assumir, entre aqueles que apenas o conheciam superficialmente, o caráter de pessoa tacanha. Como muitas cria-
(3) Poe usa o termo plum, que na Inglaterra designava popularmente a soma de cem mii libras esterlinas. (N. T.)
turas excelentes, parecia possuído do espírito de tantalização , que podia facilmente, a uma observação fortuita, ser tomado como malevolência. A todo pedido, um positivo "Não!" era sua imediata resposta. Mas, no fim, no longo e demorado fim, excessivamente poucos pedidos havia que ele recusasse. Contra todos os ataques da sua bolsa, fazia ele a mais vigorosa defesa, mas a quantia extorquida, afinal estava, geralmente, na razão direta da demora do cerco e da teimosia da resistência. Para coisas de caridade, ninguém dava com melhor liberalidade e pior boa-vontade.
Quanto às belas-artes e especialmente às belas-letras, mantinha para com elas profundo desprezo. Nisto tinha sido inspirado por Casimir Perier,(4) cuja impertinente perguntinha, A quoi un poète est-il bon? tinha ele o costume de citar em todos os casos com uma rídicula pronúncia, como se aquilo fosse o nec plus ultra da fiinura lógica. Por isso, minha própria inclinação pelas musas havia provocado sua completa desaprovação. Assegurou-me um dia, quando lhe pedi um novo exemplar de Horácio, que a tradução de Poeta nascitur non fit era:
"Poeta asnático não fito", observação que me causava profundo ressentimento. Sua repugnância pelas "humanidades" tinha também aumentado muito ultimamente, em consequência de acidental desvio em favor do que ele supunha ser ciência natural. Alguém abordara-o na rua, confundindo-o com uma pesspa que não era menos que o Dr. Dubble L., professor de física empírica. Isso o afastou do caminho que vinha seguindo , até então) e justamente na época desta estória (porque afinal se transformando em estória) meu tio-avô Rumgudgeon só era acessível e pacífico em certos pontos que se harmonizassem com as cabriolas da mania que ele cavalgava. Quanto ao resto, pouco se lhe dava, e sua política era obstinada e facilmente compreensível.
Pensava com Horsley,(6)que "o povo nada tem que ver com as leis, senão obedecer-lhes".
Eu tinha vivido com o velho toda a minha vida. Meus pais, ao morrerem tinham-me deixado a ele como uma rica herança. Acredito que o velho patife gostava de mim como se fosse seu próprio filho, quase tanto quanto gostava de Catarina. Mas, de qualquer modo, era uma vida de cachorro a que ele me dava. Desde um ano de idade ate os cinco, mimoseou-me com surras bem regulares. Dos cinco aos quinze anos, ameaçava-me, a cada hora, com a casa de correção. Dos quinze aos vinte, não se passava um só dia sem que me prometesse deixar-me sem nem um vintém. Eu não era boa bisca, é verdade, mas então isso era parte de minha natureza, um ponto de fé. Em Catarina, porém, tinha um amigo fiel e bem sabia disso. Ela era uma boa moça e dizia-me, mui docemente, que eu poderia tê-la (com boIada e tudo), quando pudesse arrancar do meu
(4) político e financista francis (1777-1832). (N. T.)
(5) Para que serve um poeta? (N. T.)
(6) Samuel Horsley (1733-1806), prelado e escritor britânico, aautor de várias obras eruditas. (N. T.)
tio-avô Rumgudgeon o necessário consentimento. Pobre moça, tinha apenas quinze anos e, sem esse consentimento, o que ela possuia em dinheiro não bastaria para esperar que cinco verões tivessem "fluído lenta e longamente". Que fazer então, aos quinze anos, ou mesmo aos vinte e um (porque eu acabara de completar minha quinta olimpíada), cinco anos em perspectiva era bem o mesmo que quinhentos. Em vão assediávamos o velho com importunidades. Havia uma piêce de résistance (7) (como diriam Messieurs Ude e Carne) que se adaptava à sua perversa fantasia com perfeita exatidão. Teria suscitado a indignação do próprio Jó, ver de que modo ele procedia, como um velho gato rateiro, contra nos dois, pobres e infelizes camundongos. No íntimo, nada mais ardentemente desejava ele do que a nossa união. Havia muito tempo que metera isso na cabeça. De fato, teria dado dez mil libras de seu próprio bolso (a bolada de Catarina era dela mesma) se pudesse ter inventado qualquer coisa como uma desculpa para conccordar com os nossos naturalíssimos desejos. Mas fôramos bastante imprudentes, mencionando a questão nós mesmos, acredito sinceramente que estava acima de suas forças deixar de opôr-se a isso, em tais circunstâncias. Já disse que ele tinha seus pontos fracos. Mas, falando deles, não se deve entender que eu me refira à sua obstinação: esta era um dos seus pontos fortes - assurément ce n'était pas son faible (8).
Quando menciono sua fraqueza, aludo a uma esquisita supertição mulheril que o dominava. Ele era especialista em sonhos, et id genus omne de algaravias. Era também excessivamente exigente em pequenos pontos de honra e, a seu jeito, um homem de palavra, sem dúvida alguma. Esta era, de fato, uma de suas manias. O escrupulo de suas promessas não tinha ele escrúpulo em desprezar, mas a letra era um laço inviolável. Ora, foi desta última particularidade de seu gênio que a habilidade de Catarina se valeu para permitir que, um belo dia, não muito depois de nossa entrevista no salão, tirássemos inesperada vantagem. E tendo assim, à maneira de todos os modernos bardos e oradores, esgotado em prolegomena todo o tempo às minhas ordens e quase todo o espaço à minha disposição, resumirei em poucas palavras, o que constitui o essencial da estória.
Aconteceu - pois assim quiseram os fados - que entre os conhecidos de minha noiva, na Marinha, havia dois cavalheiros que acabavam justamente de desembarcar na Inglaterra depois de um ano de ausência cada um, em viagem pelo estrangeiro. Em companhia desses cavalheiros, minha prima e eu combinamos, antecipadamente, fazer uma visita ao tio Rumgudgeon, na tarde de domingo, dez de outubro, justamente três semanas depois da memorável decisão que tinha tão cruelmente destruído nossas esperanças. Durante cerca de meia hora, a conversa travou-se em assuntos comuns.
(7) Peça de resistência. (N. T.)
(8) Certamente não era o seu fraco. (N.T.)
Mas afinal conseguimos, bastante naturalmente, fazê-la enveredar pelo seguinte caminho:
Capitão PRATT. - Ora, faz justamente um ano que estive ausente. Justamente um ano, hoje, se não me falha a memória... Vejamos, sim, hoje é dez de outubro! Lembra-se, Sr. Rumgudgeon, de que escolhi este dia do ano para despedir-me do senhor? E a proposito, parece-me que há uma coincidência, não é?, no fato de que nosso amigo aqui, o Capitão Smitherton, esteve também exatamente um ano justo, um ano que se cumpre hoje!
SMITHERTON. - Sim, justamente um ano completo. O senhor deve lembrar-se, Sr. Rumgudgeon, que, como o Capitão Pratt, eu escolhi o mesmo dia, há um ano, para apresentar minhas despedidas.
Sim, ... sim… sim… Lembro-me muito bem... E é, na verdade muito estranho! Ambos vocês partiram justamente há um ano. Estranhíssima coincidência, de fato. Justamente, o que o Dr. Dubble L. Dee denominaria uma extraordinária concorrência de acontecimentos. O Dr. Dub…
CATARINA - (ínterrompendo.) Decerto, papai, é algo estranho! Mas depois o Capitão Pratt e o Capitão Smitherton não seguiram juntos o mesmo caminho, e isto faz diferença, o senhor sabe.
Tio - sei nada disso, sua atrevida! Como haveria de saber? Sei só que isso torna a apenas torna a questão mais notável! O Dr. Dubble L. Dee…
CATARINA - Ora, papai, o Capitão Pratt rodeou o cabo Honr e o Capitão Smitherton dobrou o cabo da Boa Esperança.
TIO - Precisamente! Um seguiu para leste e o outro para oeste, sua intrometida, e ambos deram uma volta inteira ao mundo. A propósito, O Dr. Dubble L. Dee...
EU - (Apressadamente.) Capitão Pratt, o senhor deve vir passar a tarde conosco amanhã... o senhor e Smitherton. Poderão contar-nos tudo a respeito de suas viagens, jogaremos uma partida de whist e…
PRATT - Whist, meu caro rapaz? Você se esquece de que amanhã será domingo? Em qualquer outra tarde.
CATATINA - Oh, não, ora essa! Roberto não é tão ímpio assim! Hoje é que domingo, capitão.
Tio - Decerto, decerto.
PRATT - Peço desculpa aos dois, mas não posso estar tão enganado. Sei que amanhã é domingo, porque...
SMITHERTON - (Muito surpreso.) Onde é que estão vocês todos com a cabeça? Só queria saber se domingo não foi ontem!
TODOS - Ontem? Com efeito, o senhor está enganado.
TIO - Hoje é que é domingo, digo eu! Então eu não sei?
PRATT- Oh, não! Domingo é amanhã !
SMITHERTON. - Vocês todos estão malucos! Nenhum escapa! Tenho certeza de que ontem foi domingo como a de estar sentado aqui nesta cadeira!
CATARINA. - (Andando um salto, ansiosamente.) compreendo…compreendendo tudo! Isto é uma decisão contra o senhor, a respeito de... a respeito daquilo que o senhor sabe. Deixe-me falar e explicarei tudo num minuto. É uma coisa muito simples, na verdade. O Capitão Smitherton diz que ontem foi domingo, e está certo. Ele tem razão. O primo Bobby, o tio e eu dizemos que domingo é hoje: é isso mesmo, estamos certos. O Capitão Pratt sustenta que amanhã é que será domingo; será mesmo, ele também está certo. E o fato é que nós todos estamos certos e, dessa forma, três domingos se juntaram numa semana.
SMITHERTON. - (Depois de uma pausa.) A propósito, Pratt, a Catarina descobriu a coisa completamente. Que idiotas somos nós dois, Sr. Rumgudgeon, o negócio é este: a terra, como o tem vinte e quatro mil milhas de circunferência. Ora, esse globo terrestre gira em torno de seu próprio eixo, dá voltas…roda essas vinte e quatro mil- milhas de extensão, indo do oeste para o leste no espaço precisamente de vinte e quatro horas. Está compreendendo, Sr. Rumgudgeon? Tio. - Decerto... decerto... O Dr. Dubb…
SMITHERTON. - (Afogando-lhe a voz.) Pois bem: isso é feito à razão de mil milhas por hora. Ora, suponhamos que desta posição a mil milhas a leste. Sem dúvida, antecipar-me-ei aó nascer do sol, aqui em Londres, justamente uma hora. Verei sol levantar-se uma hora antes que o senhor o veja. Continuando na mesma direção ainda outras mil milhas, antecipar-me-ei duas horas ao nascer do sol; outras mil, e antecipar-me-ei três horas, assim por diante, até dar uma volta completa em torno do globo e estar de volta a este mesmo ponto, quando, tendo percorrido vinte e quatro mil milhas para leste, antecipar-me-ei ao nascer do sol, em Londres, nada menos de vinte e quatro horas; isso é, acho-me um dia adiantado ao tempo do senhor. Compreendeu, não é? Tio. - Mas Dubble L. Dee....
SMITHERTON. - (Falando muito alto.) O Capitão Pratt. Pelo contrário, depois de ter navegado mil milhas para oeste desta posição estava atrasado uma hora, e, depois de ter navegado vinte e quatro mil milhas para oeste, estava vinte e quatro horas ou um dia em atraso ao tempo de Londres. De modo que, para mim, ontem foi domingo. De modo que, para o senhor, hoje é domingo. De modo que, para Pratt, amanhã será domingo. E o que é mais Rumgudgeon, positivamente claro é que todos nós estamos certos, por que não pode haver raciocínio filosófico que especifique qual das idéias de cada um de nós deveria prevalecer sobre a dos outros.
Tio. - E essa, hein! Bem, Catarina... Bem, Bobby! Isso é mesmo uma decisão contra mim, como vocês disseram. Mas eu sou um homem de palavra... veja bem isto! Você casará com ela, rapaz, (com boiada e tudo), quando quiser! Com efeito! Três domingos e todos enfileirados! Vou saber a opinião do Dr. Dubble L. Dee a respeito disto!
terça-feira, 8 de novembro de 2011
TRÊS DOMINGOS EM UMA SEMANA
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