segunda-feira, 11 de outubro de 2010

SOMBRA )PARÁBOLA(

Abrindo a sessão "Ensaios" do blog do Poe:



SOMBRA
(PARÁBOLA)
Publicado pela primeira vez no Southern Literary Messenger. setembro 1835
título original: SHADOW. A FABLE

Na verdade, embora eu caminhe através do vale da Sombra...
DAVI: salmos.
Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos: mas eu que escrevo terei
partido há muito para a região das sombras. Porque de fato estranhas coisas
acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão
antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem lidas, alguém
haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos
encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estilete
de ferro.




O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror,
para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos pródigios e sinais se
haviam produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas
da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era
desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça, e para mim, o
grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele
ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com
o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se
muito não me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da terra, mas
nas almas, imaginações e meditações da Humanidade.


Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios,
entre as paredes de nobre salão, na sombria cidade Ptolemais. Para a sala em que
nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de bronze, de feitio
raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas,
adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres
estrelas e das ruas despovoadas; mas o pressentimento e a lembrança do flagelo
não podiam ser assim excluídos.


Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar
precisa conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de
sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele estado de existência que as
pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e
as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos
acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que
bebiamos. E todas as coisas se sentiam opressas e prostradas, todas as
coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam a nossa
orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim permaneciam ardendo, pálidas
e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a
que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o pavor de
seu próprio rosto e brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros.
Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo - que era histérico -, e
cantávamos as canções de Anacreonte - que são doidas -, e bebíamos
intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali
havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio
comprido, amortalhado, era como o gênio e o demónio da cena. Mas Ah! Não
tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convuIsionado pela doença, e seus
olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste,
pareciam interessar-se pela nossa alegria, na medida em que, talvez, possam os
mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos,
sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não
perceber a amargura de sua expressão.



E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano,
cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, pouco a
pouco, minhas canções cessaram e seus ecos ressoando ao longe, entre os
reposteiros negros do aposento tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se.


E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções,
se destacou uma sombra negra e imprecisa , uma sombra tal como a da lua
quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a
sombra de um homem, nem a sombra de um deus, nem a de qualquer outro ente
conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-
se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mais a sombra era
vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem homem, nem de deus, de deus da
Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta
de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra
alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado,
encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava.
Nós, porem, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se
destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas
baixávamos os olhos e fixavámos sem desvio as profundezas do espelho de
ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei
da sombra seu nome e seu lugar de nascimento. E a sombra respondeu: Eu sou
a SOMBRA e minha morada está perto das Catacumbas de Ptolemais , junto
daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte."

E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos,
trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era o de
um só ser, mas de uma multidão e variando as suas inflexões, de sílaba para sílaba,
vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares
 relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.
By: EnigmA ^~^

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